Resumo de A Literatura e a Vida Social, capítulo de Literatura e Sociedade, obra de Antonio Candido. Boa leitura!
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Desejo aqui focalizar aspectos sociais que envolvem a vida artística e literária nos seus diferentes momentos.
Do século passado aos nossos dias, este gênero de estudos tem permanecido insatisfatório, devido à falta de um conjunto de formulações e conceitos que permitam limitar objetivamente o campo de análise e escapar ao arbítrio dos pontos de vista.
O primeiro cuidado em nossos dias é, portanto, delimitar os campos e fazer sentir que a sociologia neste caso, não pretende explicar o fenômeno literário ou artístico, mas apenas esclarecer alguns dos seus aspectos. Neste ponto, surge uma pergunta: qual a influência exercida pelo meio social sobre a obra de arte? E qual a influência exercida pela obra de arte sobre o meio?
Assim, a primeira tarefa é investigar as influências concretas exercidas pelos fatores socioculturais. É difícil discriminá-los, mas pode-se dizer que os mais decisivos se ligam à estrutura social, aos valores e ideologias, às técnicas de comunicação. Os primeiros se manifestam mais visivelmente na definição da posição social do artista, ou na configuração de grupos receptores; os segundos, na forma e conteúdo da obra; os terceiros, na sua fatura e transmissão.
Como se vê, não convém separar a repercussão da obra da sua feitura, pois a arte é um sistema simbólico de comunicação inter-humana. A arte pressupõe algo diferente e mais amplo do que as vivências do artista.
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Tomemos os três elementos fundamentais da comunicação artística — autor, obra, público — e vejamos sucessivamente como a sociedade define a posição e o papel do artista; como a obra depende dos recursos técnicos para incorporar os valores propostos; como se configuram os públicos.
1 — A posição do artista
A posição social é um aspecto da estrutura da sociedade. A arte pressupõe um indivíduo que assume a iniciativa da obra. Mas precisa ele ser necessariamente um artista, definido e reconhecido pela sociedade como tal? A resposta seria: conforme a sociedade, o tipo de arte e, sobretudo, a perspectiva considerada.
A existência de artista realmente profissional, que vive da sua arte, dedicando-se apenas a ela, constitui desenvolvimento mais recente. Nas sociedades modernas, a autonomia da arte permite atribuir a qualidade de artista mesmo a quem a pratique ao lado de outras atividades. Quando a própria arte não se dissocia com nitidez, o artista permanece mergulhado no sincretismo das funções.
Uma vez reconhecidos como tais, os artistas podem permanecer desligados entre si ou vincular-se, seja por meio de uma consciência comum, seja pela formação de grupos geralmente determinados pela técnica. Esta é pressuposto de toda arte, envolvendo uma série de fórmulas e modos de fazer que, uma vez estabelecidos, devem ser conservados e transmitidos. É então frequente a existência de certas confrarias que as detêm e nelas iniciam outros indivíduos.
2 — A configuração da obra
A obra depende estritamente do artista e das condições sociais que determinam a sua posição. Quanto à obra, focalizemos o influxo exercido pelos valores sociais, que nela se transmudam em conteúdo e forma.
Há o setor em que os valores assumem nítido caráter ideológico. Em nossos dias o bolchevismo, na sua fase ascendente, deu lugar a um tipo de romance coletivista, em que os protagonistas são substituídos pelo esforço anônimo da massa, como O cimento, de Fiodor Gladkov.
Tanto quanto os valores, as técnicas de comunicação de que a sociedade dispõe influem na obra, sobretudo na forma, e, através dela, nas suas possibilidades de atuação no meio. Como exemplo, há a influência decisiva do jornal sobre a literatura, criando gêneros novos, como a chamada crônica, ou modificando outros já existentes, como o romance. É o clássico “romance de folhetim”, com linguagem acessível, temas vibrantes, suspensões para nutrir a expectativa, diálogo abundante com réplicas breves. Por sua vez, este gênero veio a influir sobre a nova arte do cinema.
3 — O público
O último ponto a considerar é o do receptor de arte (notadamente de literatura), que integra o público em seus diferentes aspectos.
No que se refere às sociedades primitivas, é menos nítida a separação entre o artista e os receptores, não se podendo falar muitas vezes num público propriamente dito. À medida, porém, que as sociedades se diferenciam e crescem em volume demográfico, se pode falar em público diferenciado, no sentido moderno. Mas, enquanto numa sociedade menos diferenciada os receptores se encontram em contato direto com o criador, tal não se dá em nosso tempo, quando o público não constitui um grupo, mas um conjunto informe, isto é, sem estrutura. Contudo, a sua ação é enorme sobre o artista. Premido pela exigência dos leitores, Conan Doyle ressuscita Sherlock Holmes — que lhe interessava secundariamente — e prolonga por mais vinte anos a série das suas aventuras.
Vejamos agora a influência de um fator sociocultural, a técnica, sobre a formação e caracterização dos públicos. No caso da literatura, ou da música, as manifestações primitivas se ligam necessariamente à transmissão imediata, por contato direto. A invenção da escrita (para o caso da literatura) mudou esta situação, abrindo uma era em que foram tendendo a predominar os públicos indiretos, de contatos secundários e que adquiriram ímpeto vertiginoso com a invenção da tipografia e o fim do mecenato estamental.
Se nos voltarmos agora para o comportamento artístico dos públicos, veremos uma terceira influência social, a dos valores, que se manifestam sob várias designações — gosto, moda, voga — e sempre exprimem as expectativas sociais. A sociedade, com efeito, traça normas por vezes tirânicas para o amador de arte, e muito do que julgamos reação espontânea de nossa sensibilidade é, de fato, conformidade automática aos padrões. Mesmo quando pensamos ser nós mesmos, somos público, pertencemos a uma massa cujas reações obedecem a condicionantes do momento e do meio.
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Se forem válidas, as considerações anteriores mostram de que maneira os fatores sociais atuam concretamente nas artes, em especial na literatura.
Terminando, desejo voltar à relação inextricável, do ponto de vista sociológico, entre a obra, o autor e o público, cuja posição respectiva foi apontada. Na medida em que a arte é um sistema simbólico de comunicação inter-humana, ela pressupõe o jogo permanente de relações entre os três, que formam uma tríade indissolúvel. O público dá sentido e realidade à obra, e sem ele o autor não se realiza. Deste modo, o público é fator de ligação entre o autor e a sua própria obra.
A obra, por sua vez, vincula o autor ao público, pois o interesse deste é inicialmente por ela, só se estendendo à personalidade que a produziu depois de estabelecido aquele contato indispensável. Assim, à série autor-público-obra, junta-se outra: autor-obra-público. Mas o autor, do seu lado, é intermediário entre a obra, que criou, e o público, a que se dirige; é o agente que desencadeia o processo, definindo uma terceira série interativa: obra-autor-público.
Penso ter ficado claro que o estudo sociológico da arte, aflorado aqui sobretudo através da literatura, ajuda a compreender a formação e o destino das obras; e, neste sentido, a própria criação.
Bibliografia:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.