Resumo de Estímulos da Criação Literária, capítulo de Literatura e Sociedade, obra de Antonio Candido. Boa leitura!
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O ponto de vista preponderante nos estudos filosóficos e sociais quase até os nossos dias foi o do adulto, branco, civilizado, que reduz à sua própria realidade a realidade dos outros. O mundo das crianças, por exemplo, ou o dos povos estranhos — sobretudo os chamados primitivos — era passado por este crivo deformante.
Os povos primitivos têm sido considerados pendularmente como brutos e como seres privilegiados, através de concepções que assumem diversos matizes.
Os trabalhos de Malinowski fizeram ver que os povos primitivos distinguem, essencialmente como nós, o lógico e o mágico, embora na sua mente ambos formem configurações diversas, fazendo ver que, ao menos sob este aspecto, as mentalidades de todos os homens têm a mesma base essencial.
A verificação de que as culturas são relativas leva a meditar nas singularidades, que seriam explicadas à luz das maneiras peculiares com que cada contexto geral interfere no significado dos traços particulares, e reciprocamente, determinando configurações diversas. Assim, a atitude correta seria investigar a atuação variável dos estímulos condicionantes, pois se a mentalidade do homem é basicamente a mesma, e as diferenças ocorrem sobretudo nas suas manifestações, estas devem ser relacionadas às condições do meio social e cultural.
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Diversamente do que ocorre com a nossa, a atividade artística do homem primitivo e do homem rústico mantém com a vida social e seus fatores básicos ligamentos de tal ordem, que só podem ser bem compreendidos se estudados por meio da combinação de pelo menos três disciplinas, — ciência do folclore, sociologia e análise literária — que, isoladamente, não permitem interpretação justa. A sua conjugação é necessária, pois nas literaturas orais a autonomia do autor é menos acentuada, enquanto é mais nítido o papel exercido pela obra na organização da sociedade.
A falta de integração dos pontos de vista dá muitas vezes um aspecto fragmentário aos trabalhos do folclorista, fazendo com que pareçam meras etapas preliminares da verdadeira compreensão. Por outro lado, quando aborda as formas orais, o estudioso de literatura não é geralmente capaz de perceber a sua atuação viva na comunidade, tratando os seus produtos com a ilusão de autonomia, como se fossem textos de alta civilização. Finalmente, o sociólogo costuma despi-los do sentido estético, essencial para compreender a sua natureza, manipulando-os como traços entre outros de um sistema cultural ou social.
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Um trabalho ideal sobre a literatura dos grupos iletrados, primitivos mas também rústicos, deveria partir da observação concreta dos fatos, passar às análises estruturais e comparativas, para chegar à sua função na sociedade, sem sacrificar o aspecto estético nem o sociológico.
Na literatura oral, o mergulho na circunstância determina uma estrutura de palavras com menor autonomia, que só se desenvolve quando a obra ganha independência em relação às condições de produção. Como na literatura erudita, onde a extrema plurivalência da palavra confere ao texto uma elasticidade que lhe permite ajustar-se aos mais diversos contextos.
Esquematizando, diríamos que as formas eruditas de literatura dispensam o ponto de vista sociológico, mas de modo algum a análise estética; enquanto as suas formas orais dispensariam a análise estética, mas de modo algum o ponto de vista sociológico.
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É bom lembrar que já superamos a fase em que era preciso ou conceber a arte primitiva como jogo gratuito, ou concebê-la como atividade pragmática no sistema das funções sociais.
A arte, e portanto a literatura, é uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e um elemento de manipulação técnica, indispensável à sua configuração, e implicando uma atitude de gratuidade. Gratuidade tanto do criador, no momento de conceber e executar, quanto do receptor, no momento de sentir e apreciar. Isto ocorre em qualquer tipo de arte, primitiva ou civilizada. Ademais, os estímulos que despertam o desejo ou a necessidade de estilização formal são frequentemente diversos dos nossos, na arte e na literatura primitivas: o que para nós é acessório pode ser fundamental para os grupos iletrados.
Passemos a um tema concreto, para mostrar de que maneira, na poesia das comunidades iletradas, os fatos de infraestrutura podem ganhar um sentido estético direto. Poderíamos investigar o significado que a obra adquire como elaboração estética de um problema fundamental: o do ajustamento ao meio físico para sobrevivência do grupo.
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Para isso, nada melhor do que focalizar como exemplo as necessidades fundamentais do homem, sobretudo as da nutrição, que não se associam geralmente para nós a ideias de beleza ou de vibração emocional. No primitivo, constataremos que a cenestesia e as representações ligadas ao alimento podem motivar um tipo de sensibilidade estética diferente da nossa. É o problema da “sacralização do alimento”, isto é, a formação de representações mentais e de práticas que tendem a conferir à comida, à sua busca e à sua ingestão, um caráter mágico, ritual ou poético.
Nos povos primitivos, a construção da dieta depende de um abastecimento bastante precário. Há, portanto, uma série de problemas suscitados a todo instante com premência angustiosa, motivando tensão emocional, com formação de interditos, normas de etiqueta, exaltação da realidade. A observação desse vasto complexo mostra que uma boa parte da criação poética do homem primitivo se liga ao drama permanente da sobrevivência imediata do grupo pela exploração do meio; e que apenas os critérios sociológicos poderão mostrar o seu significado. As formas primitivas da atividade estética aparecem, então, vinculadas imediatamente à experiência do grupo, e a função total da obra só pode ser entendida sobre esta base, porque o elemento da gratuidade, indispensável à configuração da arte, depende da comunhão do indivíduo com a experiência do grupo.
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Os grupos que produzem literatura, entre nós, vivem num meio que resolveu teoricamente o problema do abastecimento regular. Por isso, apenas nas obras de cunho realista ou grotesco o alimento aparece na sua realidade básica de comida. Certas manifestações da emoção e da elaboração estética podem ser melhor compreendidas, portanto, se forem referidas ao contexto social.
Isto posto, convém ressaltar o indispensável aspecto “desinteressado” da arte primitiva. A poesia e a arte primitivas não são atividades práticas, no sentido estreito, nem vicariantes, — como pressupunha a teoria de Spencer, segundo a qual serviriam de escoadouro ao excesso de energia não aplicada diretamente nas atividades econômicas, guerreiras etc.
As manifestações artísticas são inerentes à própria vida social, não havendo sociedade que não as manifeste como elemento necessário à sua sobrevivência, pois elas são uma das formas de atuação sobre o mundo e de equilíbrio coletivo e individual. Encaradas sob o aspecto funcional, adquirem um sentido expressivo atuante, necessário à existência do grupo, ao mesmo título que os fenômenos econômicos, políticos, familiais ou mágico-religiosos, integrando-se no complexo de relações e instituições a que chamamos abstratamente sociedade. O seu caráter mais peculiar, do ponto de vista sociológico, consiste na possibilidade que apresentam de realização individual, fazendo do artista um intérprete de todos, através justamente do que tem de mais seu. Nas sociedades primitivas, e nas rústicas, verifica-se que a produção da arte e da literatura se processa por meio de representações estilizadas, de uma certa visão das coisas, coletiva na origem, que traz em si um elemento de gratuidade como parte essencial da sua natureza.
Bibliografia:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.