Brasil: Uma Biografia – Introdução ou “O Brasil Fica Bem Perto Daqui”

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Resumo da Introdução de Brasil: Uma Biografia, obra de Lilia Schwarcz e Heloisa Starling. Boa leitura!

Se muitos são os eventos, contextos políticos e culturais que assinalam os mais de cinco séculos de existência nacional, alguns traços insistem em comparecer na agenda local. Um deles é justamente a nossa difícil e tortuosa construção da cidadania. No percurso deste livro teremos oportunidade de acompanhar manifestações de claro civismo e entusiasmo público, aliás, como as que se deram em virtude da decretação da lei que aboliu a escravidão em 1888. Resultado de um ato do governo, mas sobretudo da contínua pressão popular e civil, a Lei Áurea, apesar de sua grande importância, era, porém, pouco ambiciosa em sua capacidade de prever a inserção daqueles em cujo jargão, durante tanto tempo, a cidadania e os direitos não constavam. E por isso o caso é em si exemplar. Ele lembra que atos como esse, não poucas vezes, vinham seguidos de reveses políticos e sociais.

É por essa razão que idas e vindas, avanços e recuos, fazem parte dessa nossa história que ambiciona ser mestiça como de muitas maneiras são os brasileiros: apresenta respostas múltiplas e por vezes ambivalentes sobre o país. Mais ainda, é mestiça porque prevê não só mistura mas clara separação. Numa nação caracterizada pelo poder de grandes proprietários rurais, autoritarismo e personalismo foram sempre realidades fortes, a enfraquecer o exercício livre do poder público, a desestimular o fortalecimento das instituições e com isso a luta por direitos.

Outro traço tem lugar cativo na história brasileira. A violência está encravada na mais remota história do Brasil. Fruto da nossa herança escravocrata, a trama dessa violência é comum a toda a sociedade e foi naturalizada. A experiência de violência e dor resiste e se dispersa na trajetória do Brasil moderno, estilhaçada em milhares de modalidades de manifestação.

Último país a abolir a escravidão no Ocidente, o Brasil segue sendo campeão em desigualdade social e pratica um racismo silencioso mas igualmente perverso. Apesar de não existirem formas de discriminação no corpo da lei, os pobres e, sobretudo, as populações negras são ainda os mais culpabilizados pela Justiça, os que morrem mais cedo, têm menos acesso à educação superior pública ou a cargos mais qualificados no mercado de trabalho. A herança da escravidão condiciona até nossa cultura.

De tanto misturar cores e costumes, fizemos da mestiçagem uma espécie de representação nacional. De um lado, a mistura se consolidou a partir de práticas violentas, da entrada forçada de povos na realidade nacional. Diferente da ideia de harmonia, por aqui a mistura foi matéria do arbítrio. O Brasil recebeu 40% dos africanos que compulsoriamente deixaram seu continente para trabalhar nas colônias agrícolas da América portuguesa. Além do mais, e estima-se que em 1500 a população nativa girasse em torno de 1 milhão a 8 milhões, e que o “encontro” com os europeus teria dizimado entre 25% e 95%. De outro lado, é inegável que essa mesma mescla gerou uma sociedade definida por uniões, ritmos, artes, esportes, aromas, culinárias e literaturas mistas. Diversidade cultural, expressa no sentido único do termo.

Existem ainda outras facetas que fazem parte da cara (e da expressão) do país. É a mania nacional de procurar pelo milagre do dia, pelo imprevisto salvador, que o historiador Sérgio Buarque de Holanda, em seu clássico livro Raízes do Brasil, de 1936, chama de “bovarismo”.

O termo tem origem na personagem Madame Bovary, criada por Gustave Flaubert, e define justamente essa alteração do sentido da realidade, quando uma pessoa se considera outra, que não é. O estado psicológico geraria uma insatisfação crônica, produzida pelo contraste entre ilusões e aspirações, e, sobretudo, pela contínua desproporção diante da realidade. Segundo Holanda, brasileiros teriam um quê de Bovary.

Faz algum tempo achamos por bem nos identificar como Brics, apostando na noção de que o que nos une a países como Índia, China, Rússia e África do Sul é o fato de sermos economias que vêm obtendo um crescimento econômico inédito e de certa maneira mais autônomo. Se o Brasil conheceu um crescimento realmente espantoso, vale não deixar de lado temas decisivos de nossa agenda social — nas áreas do transporte, da saúde, da educação e do direito à moradia —, os quais, apesar das inúmeras e reconhecidas melhorias, continuam castigando o cotidiano nacional. Entre o que se é e o que se acredita ser, já fomos quase tudo na vida: brancos, negros, mulatos, incultos, europeus, norte-americanos, e Brics. Gênero de deslocamento tropical do famoso “ser ou não ser”, no Brasil “não ser é ser”.

O bovarismo nacional faz par com outra característica que tem nos definido enquanto nacionalidade: o “familismo”, ou o costume arraigado de transformar questões públicas em questões privadas. Entre nós, o bom político é um familiar, mais reconhecido pelo primeiro nome ou por um apelido: Dilma, Jango, Juscelino, Lula, Getúlio. Não por coincidência, os generais da ditadura eram chamados pelo sobrenome: Castello Branco, Costa e Silva, Geisel, Médici e Figueiredo. No Brasil, tudo passa pela esfera da intimidade (aqui, até os santos são chamados no diminutivo), num impressionante descompromisso com a ideia de bem público e numa clara aversão às esferas oficiais de poder. Outro exemplo de como são duradouras nossas representações é a mania de congelar a imagem de um país avesso ao radicalismo e parceiro do espírito pacífico, por mais que inúmeras rebeliões, revoltas e manifestações invadam a nossa história de ponta a ponta.

Reconhecidas certas características que funcionam como um tipo de dialeto interno, o segundo passo é quem sabe compreender de que forma esses fenômenos não são exclusivamente internos. O país foi sempre definido pelo olhar que vem do exterior. Desde o século XVI, o território já era observado com consideráveis doses de curiosidade. O Brasil surgia representado ora por estereótipos que o designavam como uma grande e inesperada “falta” — de lei, de hierarquia, de regras — ora pelo “excesso” — de lascívia, de sexualidade, de ócio ou de festas. A acreditar nessa perspectiva, seríamos algo como uma periferia do mundo civilizado, habitada por uma brasilidade gauche — desajeitada, mas muito alegre, pacífica e feliz.

O Brasil é, ao mesmo tempo, uma nação marcada por altos gaps sociais e índices elevados de analfabetismo, mas também por um sistema dos mais modernos e confiáveis de aferição de votos. É aquele que introduz de maneira veloz, em seu parque industrial, as benesses da modernidade ocidental, e o segundo em acessos ao Facebook, mas que mantém congeladas no tempo áreas inteiras do território nacional, sobretudo na Região Norte, onde só se trafega na base das pequenas jangadas a remo. Que possui uma Constituição avançada — a qual impede qualquer forma de discriminação — mas pratica um preconceito duradouro e enraizado no cotidiano. No país, o tradicional convive com o cosmopolita; o urbano com o rural; o exótico com o civilizado — e o mais arcaico e o mais moderno coincidem, um persistindo no outro, como uma interrogação.

Aqui não se pretende contar uma história do Brasil, mas fazer do Brasil uma história. A biografia talvez seja outro bom caminho para tentar compreender o Brasil em perspectiva histórica. Uma biografia é a evidência mais elementar da profunda conexão entre as esferas pública e privada: somente quando estão articuladas, essas esferas conseguem compor o tecido de uma vida, tornando-a real para sempre.

A imaginação e a multiplicidade das fontes são dois predicados importantes na composição da biografia. É preciso conectar o público ao privado para penetrar num tempo que não é o nosso, sentir com sentimentos de outras pessoas e tentar compreender a trajetória dos protagonistas dessa biografia — os brasileiros — no tempo que lhes foi dado viver.

Não vamos avançar além do período que marca o final da fase da redemocratização, consolidada com a primeira eleição de FHC. A história dos governos de Fernando Henrique Cardoso e de Lula ainda está se fazendo e que um novíssimo período da vida do país está sendo aberto.

Fica combinado, portanto, que não se pretende dar conta de toda a história do Brasil. Vamos antes narrar a aventura da construção de uma complicada “sociedade nos trópicos”. Longe da imagem do país pacífico e cordato, ou da alentada democracia racial, a história que aqui se vai contar descreve as vicissitudes dessa nação que acomodou junto — e ao mesmo tempo — uma hierarquia rígida, condicionada por valores partilhados internamente, como um idioma social. Visto desse ângulo, o país precisa mesmo de uma boa tradução.

Bibliografia:

SCHWARCZ, Lilia Moritz e STARLING, Heloisa Miguel. Brasil: Uma Biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

Rolf Amaro

Nascido em 83, formado em Ciências Sociais, músico, sempre ando com um livro na mão. E a Ana,minha senhora, na outra.

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