Brasil: Uma Biografia – Toma Lá Dá Cá: O Sistema Escravocrata e a Naturalização da Violência

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Resumo de Toma Lá Dá Cá: O Sistema Escravocrata e a Naturalização da Violência, capítulo 3 de Brasil: Uma Biografia, obra de Lilia Schwarcz e Heloisa Starling. Boa leitura!

O TRÁFICO DE VIVENTES

O jesuíta Antonil definiu os escravos como “as mãos e os pés do senhor do engenho porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente”. Os escravos chegaram a constituir, em regiões como o Recôncavo, na Bahia, mais de 75% da população. Poucos foram os povos que deixaram de conviver com o sistema escravocrata. Nas antigas civilizações o trabalho compulsório não significava a principal força para a produção de bens e realização de serviços. Mesmo com o declínio do Império Romano e a concentração de cativos nas tarefas domésticas, o sistema se manteve vigente.

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Verdadeiro holocausto de inícios da era moderna, era o que dava realmente conta da produção crescente da cana-de-açúcar e, no século seguinte, do ouro e do diamante.

NO BRASIL A MISTURA

No Brasil, sempre foi grande a mistura de povos que aqui chegavam: vinham do Senegal, de Angola, do Congo, da Costa da Mina e do golfo de Benin, mas também desembarcaram, aos milhares, jejes, nagôs (iorubás), tapas (nupés), haussás, e grupos sudaneses. Cerca de um terço dos escravos, porém, provinha dos povos bantos de Angola e da África Central.

ESCRAVIDÃO É SINÔNIMO DE VIOLÊNCIA

Um sistema como o escravismo moderno só se enraíza com o exercício da violência. Mas, por mais que houvesse nuances, a maioria dos cativos se destinava à labuta pesada no campo, sob o sol escaldante do Nordeste, a qual por vezes tomava mais de vinte horas diárias.

Sobrava trabalho, faltava roupa e alimento. Em documentos de época, viajantes afirmavam que os escravos passavam fome no Brasil. Exigia-se que plantassem para seu sustento, mas somente os domingos eram reservados a tal atividade. A vestimenta a eles fornecida era exígua. Registros da época mencionam que os cativos andavam quase nus, ficando muito suscetíveis às mudanças do clima.

A alforria existiu em toda a história da nossa escravidão (apesar de não estar incluída em nenhuma lei civil ou religiosa). Ela poderia ainda constar de testamentos, ou ser utilizada como recompensa por lealdade ou afeição pessoal. Não obstante, o número absoluto de alforrias era pequeno, não ultrapassando 1% ao ano durante os séculos XVI e XVII. Já as possibilidades de reescravização eram das mais altas. Consideravam-se suficientes para pôr fim à alforria casos de deslealdade por parte dos libertos, assim como se apreendiam sem dificuldade negros em viagem, e anulavam-se seus passaportes e registros.

Grassava uma escandalosa ilegitimidade na escravidão. Amparado firmemente no costume, esse sistema foi marcado pela bastardia jurídica. O notável desprezo das sociedades escravistas pela obediência às leis que controlavam a violência se espraiava por toda a sociedade, facilitando a reescravização.

Era difícil escapar da escravidão. Aliás, no caso brasileiro ela tomou o território todo. Padres, militares, funcionários públicos, artesãos, taberneiros, comerciantes, pequenos lavradores, pobres e remediados, e até libertos possuíam escravos. Por essas e por outras é que a escravidão foi mais que um sistema econômico: ela moldou condutas, definiu desigualdades sociais, fez de raça e cor marcadores de diferença fundamentais, ordenou etiquetas de mando e obediência, e criou uma sociedade condicionada pelo paternalismo e por uma hierarquia estrita.

E há ainda outro elemento a destacar. Por aqui os escravos reagiram mais, mataram mais os seus senhores e feitores, se aquilombaram mais e, por fim, também se revoltaram mais. A provável explicação dessas reações repousa em muitas especificidades: na fragilidade das instituições policiais e jurídicas, na menor coesão da classe senhorial — dividida entre pequenos, médios e grandes proprietários, espalhados por todo o país —, mas, sobretudo, na certeza de que violência chama invariavelmente mais violência. A luta pela liberdade sempre foi um desejo e um objeto perseguido pelos escravizados.

TOMA LÁ DÁ CÁ: REBELIÕES, INSURREIÇÕES E MOVIMENTOS ESCRAVOS

Os escravizados reagiram a sua rotina de trabalhos forçados fazendo, quando podiam, pequenas e médias barganhas, negando-se a executar certas tarefas, ou apenas contrariando a vontade dos senhores.

Mas reagiram ao cotidiano violento também de forma violenta, sendo frequentes as fugas — individuais e em massa —, os assassinatos de feitores e senhores, e as insurreições organizadas. O uso de “quilombo” para designar agrupamentos de cativos fugidos se generalizou depois de Palmares —o maior e mais persistente agrupamento de quilombos que existiu no país.

PALMARES: A REBELDIA DOS QUILOMBOS

O núcleo original de Palmares era composto de cerca de quarenta cativos, todos provenientes de um mesmo engenho de açúcar em Pernambuco e que subiram a serra da Barriga, na Zona da Mata, já no atual estado de Alagoas, provavelmente em torno de 1597. A palmeira, onipresente na região, forneceu-lhes sustento e conforto, incluindo a alimentação feita do coração da árvore — o palmito — e o trançado de cordas para fabrico de armadilhas, peças de vestuário e coberturas de casebres.

Palmares passou a designar uma extensa confederação de comunidades dos mais diversos tamanhos, vinculadas por acordo umas às outras, que conduziam os próprios negócios, dispunham de autonomia e escolhiam seus líderes. Palmares chegou a abrigar aproximadamente 20 mil habitantes — a população do Rio de Janeiro, por volta de 1660, era de 7 mil pessoas. A confederação quilombola resistiu por um século às incursões militares enviadas para destruí-la.

Em 1678, representantes portugueses e uma expressiva comitiva de rebeldes enviados por Ganga Zumba reuniram-se no Recife para celebrar o tratado de paz proposto pelas autoridades coloniais. O acordo do Recife opôs Ganga Zumba a Zumbi, anulou a unidade entre os quilombolas e deu início ao período mais violento da história daquela comunidade de quilombos. Considerado traidor, Ganga Zumba foi envenenado; seus chefes militares, sumariamente degolados. Nos quinze anos que se seguiram, Zumbi liderou a guerra palmarina contra as autoridades portuguesas. A guerra só se encerrou em 1694, com a destruição, a ferro e fogo, de Palmares.

AS MUITAS MODALIDADES DA LUTA DE RESISTÊNCIA

Além das fugas, existiram outras formas de resistência, como o assassinato e envenenamento de senhores, suicídios, abortos.

Nas fazendas de café, nos engenhos de açúcar ou nos núcleos urbanos era frequente escravos brigarem com seus senhores e barganharem o direito de tocar, dançar e cantar em obediência aos seus ritos religiosos, sem o consentimento do feitor — e, é claro, sem a intromissão da polícia. Esse era um acontecimento que tinha lugar em áreas próximas às fazendas e engenhos ou aos núcleos urbanos — os chamados “terreiros”.

O candomblé — a religião dos orixás — foi o nome dado, a partir do início do século XIX, a essa reconstrução dos rituais de celebração religiosa, tomando como base tradições de povos nagôs e de grupos jejes. Ele ajudou a ampliar as fronteiras de identificação entre grupos diversos, produziu critérios de importância simbólica para o bom funcionamento da vida comunitária, criou canais de comunicação com a sociedade escravista. Também negociou experiências históricas distintas entre africanos, mestiços e índios — e, não por acaso, o chamado “candomblé de caboclo” cultua, ainda hoje, os espíritos dos antepassados da terra brasileira, os índios, que são na Bahia denominados “caboclos”.

Mais do que sobreviver, populações africanas se fizeram locais, perderam o caráter estrangeiro, driblando os rigores de um regime perverso e acondicionado pela linguagem da violência.

Bibliografia:

SCHWARCZ, Lilia Moritz e STARLING, Heloisa Miguel. Brasil: Uma Biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

Rolf Amaro

Nascido em 83, formado em Ciências Sociais, músico, sempre ando com um livro na mão. E a Ana,minha senhora, na outra.

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