Resumo de Aventura e Rotina, capítulo de O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, obra de Darcy Ribeiro. Boa leitura!
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AS GUERRAS DO BRASIL
Às vezes se diz que nossa característica essencial é a cordialidade, que faria de nós um povo por excelência gentil e pacífico. A feia verdade é que o processo de formação do povo brasileiro, que se fez pelo entrechoque de seus contingentes índios, negros e brancos, foi altamente conflitivo.
Conflitos interétnicos opunham as tribos indígenas umas às outras. Mas isto se dava sem maiores consequências, porque nenhuma delas tinha possibilidade de impor sua hegemonia às demais. A situação muda completamente quando entra nesse conflito o dominador europeu e os novos grupos humanos que ele vai aglutinando, configurando como uma macroetnia expansionista.
O conflito interétnico se processa no curso de um movimento secular de sucessão ecológica entre a população original do território e o invasor que a fustiga a fim de implantar um novo tipo de economia e de sociedade. Trata‐se, por conseguinte, de uma guerra de extermínio. Nela, nenhuma paz é possível porque os índios não podem ceder no que se espera deles, que seria deixar de ser eles mesmos. Os seus alternos, os brasileiros, não abrem mão do sentimento de que, neste território, não cabe outra identificação étnica que a sua própria.
De um lado, sociedades tribais, armadas de uma profunda identificação étnica, irmanadas por um modo de vida essencialmente solidário. Do lado oposto, uma estrutura estatal, fundada na dominação de um território, cujos habitantes compõem uma sociedade articulada em classes antagonicamente opostas mas unificadas para o cumprimento de metas econômicas.
Mas há, também, conflitos virulentos entre os invasores. O mais complexo deles foi a longa guerra de colonos contra os jesuítas. Os desentendimentos surgiram assim que os padres fugiram de sua função prevista de amansadores de índios para se arvorarem a seus protetores. Ao longo de dois séculos e meio, os conflitos se sucederam, chegando até à deportação dos jesuítas.
O projeto jesuítico estrutura‐se com base na tradição solidária dos grupos indígenas e consolida‐se com os experimentos missionários de organização comunitária, de caráter proto‐socialista. No Brasil e Paraguai, acrescia o fato de que a língua utilizada pelos missionários jesuítas nas suas reduções não era o português nem o espanhol, mas o nheengatu.
Explorando as terras indígenas e sua força de trabalho, os jesuítas começaram a funcionar como províncias prósperas que se proviam de quase tudo e ainda produziam excedentes. O vulto do patrimônio jesuítico, ao tempo do seu confisco (1760), era enormíssimo. A cobiça que provocou tamanha riqueza fez crescer a cada dia os que exigiam sua desapropriação. A necessidade dessa desapropriação era defendida pela burocracia, revoltada contra o privilégio fiscal de não pagar impostos nem dízimos. O sonho dos burocratas e dos colonos acabou por alcançar‐se e alguns deles se locupletaram como “contemplados” com os bens dos padres e dos próprios índios, declarados livres, mas, de fato, submetidos ao cativeiro.
Outra modalidade principal de conflito é a dos enfrentamentos predominantemente raciais. Palmares é o caso exemplar do enfrentamento inter‐racial. Ali, negros fugidos dos engenhos de açúcar ou das vilas organizam‐se para si mesmos, na forma de uma economia solidária e de uma sociedade igualitária. Sua destruição sendo requisito de sobrevivência da sociedade escravista, torna esses conflitos crescentes inevitáveis, seja para reaver escravos fugidos, seja para precaver‐se contra novas fugas ou contra a sublevação geral dos negros.
Uma terceira modalidade de conflitos que envolvem as populações brasileiras é de caráter fundamentalmente classista. Aqui se enfrentam, de um lado, os privilegiados proprietários de terras, de bens de produção, e de outro lado, as grandes massas de trabalhadores.
Canudos é um bom exemplo dessa classe de enfrentamentos. Desde o princípio os fiéis do Conselheiro eram vistos como um grupo crescente de lavradores que saíam das fazendas e se organizavam em si e para si, sem patrões nem mercadores, e parecia e era tido como o que há de mais perigoso. Quando a situação amadureceu completamente, esse contingente humano foi capaz de enfrentar e vencer, as autoridades locais, as tropas estaduais e, por fim, diversos exércitos armados pelo governo federal. Venceram sempre, até a derrota total, porque nenhuma paz era possível entre quem lutava para refazer o mundo em nome dos valores mais sagrados e as forças armadas que cumpriam seu papel de manter esse mundo tal qual é.
Os exemplos de conflitos continuados têm de comum e mais relevante a insistência dos oprimidos em abrir e reabrir as lutas para fugir do destino que lhes é prescrito; e, de outro lado, a unanimidade da classe dominante que compõe e controla um parlamento cuja função é manter a institucionalidade em que se baseia o latifúndio. Tudo isso garantido pela pronta ação repressora de um corpo nacional das forças armadas.
A EMPRESA BRASIL
No plano econômico, o Brasil é produto da implantação e da interação de quatro ordens de ação empresarial. A principal delas foi a empresa escravista, dedicada seja à produção de açúcar, seja à mineração de ouro, ambas baseadas na força de trabalho importada da África. A segunda foi a empresa comunitária jesuítica, fundada na mão‐de‐obra servil dos índios. A terceira foi a multiplicidade de microempresas de produção de gêneros de subsistência e de criação de gado, baseada em diferentes formas de aliciamento de mão-de‐obra, que iam de formas espúrias de parceria até a escravização do indígena, crua ou disfarçada.
Na realidade, competindo embora, essas três formas de organização empresarial se conjugavam para garantir a sobrevivência e o êxito do empreendimento colonial português nos trópicos. As empresas escravistas integram o Brasil nascente na economia mundial e asseguram a prosperidade secular dos ricos. As missões jesuíticas solaparam a resistência dos índios, afinal entregues a seus exploradores. As empresas de subsistência viabilizaram a sobrevivência de todos e incorporaram os mestiços de europeus com índios e com negros. Foram, sobretudo, um criatório de gente.
Sobre essas três esferas empresariais produtivas pairava, dominadora, uma quarta, constituída pelo núcleo portuário de banqueiros, armadores e comerciantes de importação e exportação. Esse setor parasitário era, de fato, o componente predominante da economia colonial e o mais lucrativo dela. Ocupava‐se da intermediação entre o Brasil, a Europa e a África no tráfico marítimo, no câmbio, na compra e venda, para o cumprimento de sua função essencial, que era trocar mais de metade do açúcar e do ouro que aqui se produzia por escravos caçados na África.
As cúpulas empresariais seriam inexplicáveis, porém, sem a sua contraparte, que era o patriciado burocrático. Toda a vida colonial era presidida e regida, de fato, pela burocracia civil de funcionários governamentais e exatores, e pela militar dos corpos de defesa e de repressão. Operando de forma solidária, estava a burocracia eclesiástica dos servidores de Deus, consagrando os que se ocupavam dos negócios terrenos. Essa cúpula patricial formava com a cúpula empresarial e, com a mercantil, a elite dominante da colônia.
Essa classe dominante empresarial‐burocrático‐eclesiástica atuou também como reitora do processo de formação do povo brasileiro. Foi prodigiosa a capacidade para recrutar, desfazer e reformar gentes, aos milhões, destribalizando índios, desafricanizando negros, deseuropeizando brancos.
AVALIAÇÃO
O padre Cardim, que foi reitor do Colégio da Bahia, foi um dos primeiros e mais altos intelectuais brasileiros. Visitando as várias missões entre os anos de 1583 e 1590, em companhia do padre Cristóvão de Gouveia, nenhum balanço crítico é melhor que o de Cardim sobre o resultado prático das missões e da colonização. Aquelas só sobreviviam nos corpos dos brasilíndios como um patrimônio genético que se repetirá pelos séculos afora, remarcando a fisionomia dos brasileiros. A solução colonial era o mais bem‐sucedido implante europeu no além‐mar.
Podia‐se dizer, talvez, que o fracasso maior foi do stalinismo jesuítico, que tentou um socialismo precoce e inviável, e fracassou. Ao contrário, o sucesso foi de seus opositores. Também fracassados, porque não sendo um povo para si na busca de suas condições de prosperidade, permanece sendo um povo para os outros.
Bibliografia:
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.