A Ditadura Envergonhada: O Mito do Fragor da Hora

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Resumo de O Mito do Fragor da Hora, capítulo de A Ditadura Envergonhada, escrito por Elio Gaspari. Boa leitura!

Existiu uma identidade, uma relação e um conflito entre o regime instalado em 1964 e a manifestação mais crua da essência repressiva que o Estado assumiu na sua obsessão desmobilizadora da sociedade: a tortura.

No início e no fim dessa partida entre a tortura e a sociedade estão os generais ERNESTO GEISEL e GOLBERY DO COUTO E SILVA. Ambos participaram dos primeiros lances da construção, em 1964, de um aparelho repressivo incapaz de conviver com um regime constitucional. Geisel, colocado por Castello na chefia do Gabinete Militar da Presidência, estava no olho do furacão da usina de punições políticas instalada no amanhecer do regime. Golbery, concebendo e dirigindo o Serviço Nacional de Informações, criou o núcleo da rede de espionagem e repressão que, a partir de 1968, tomaria conta do Estado.

Nos primeiros dias, houve de fato o predomínio da paixão e até do medo dos vitoriosos. Nem mesmo o mais otimista dos conspiradores acreditara que o governo do presidente JOÃO GOULART caísse tão rápida e facilmente. De um lado e do outro esperou-se, por alguns dias, a temida reação dos camponeses, dos operários, dos esquerdistas em geral, mas era fantasia mútua.

A repressão política, porém, emanava do coração do regime e tinha uma nova qualidade. A tortura passara a ser praticada como forma de interrogatório em diversas guarnições militares. Instalado para combater a “corrupção e a subversão”, o governo atribuía-se a tarefa de acabar com ambas. O instrumento desse combate eram os INQUÉRITOS POLICIAL-MILITARES (IPMs), abertos em todos os estados e submetidos, inicialmente, ao controle de uma COMISSÃO GERAL DE INVESTIGAÇÕES (CGI) chefiada por um marechal. Apuravam desde a subversão nas universidades até a corrupção no governo federal. Cada inquérito era presidido por um oficial, a quem se dava a autonomia de autoridade policial.

Aos poucos, a ordem revolucionária teve de conviver tanto com os corruptos como com os toquemadas que, infiltrando-se nas cabeceiras do regime, desejavam fazer do combate à ladroeira uma alavanca para o poder pessoal. Nasceu nessa época a expressão “LINHA DURA”. Designava os ultrarrevolucionários, mas também um grupo de oficiais que, além de radicais, atravessavam com facilidade a fronteira da indisciplina. Sua face mais exibida eram oficiais que usavam os IPMs como forma de afirmação de um poder paralelo ao do presidente da República. Sua base espalhava-se pelos quartéis, e sua articulação agrupava os descontentamentos à direita do regime. A linha dura opunha-se ao desejo do presidente CASTELLO BRANCO de limitar os poderes excepcionais de que dispunha, para normalizar a vida política nacional.

Castello queria um ato institucional que durasse só três meses. Assinou três. Queria que as cassações se limitassem a duas dezenas de dirigentes do regime deposto. Cassou cerca de quinhentas pessoas e demitiu 2 mil. Seu governo durou 32 meses, 23 dos quais sob a vigência de outros 37 atos complementares. Era um oficial de formação liberal, mas faltou-lhe a vocação para o risco. Na origem dessa vacilação estava o medo de perder a base militar, dividindo-a e tornando-se vulnerável a uma revanche das forças depostas e, sobretudo, aos ataques de seus adversários políticos que rondavam quartéis, tipos que menosprezava.

A partir da tarde de 31 de março de 1964, o Brasil entrou num regime militar em que conviveram esquizofrenicamente uma obsessão pela ordem pública e a desordem nos quartéis. A anarquia atacava a ordem militar. Durante o regime civil da Constituição de 1946 os quartéis rebelaram-se em 1954 para depor GETÚLIO VARGAS e, um ano depois, para derrubar os presidentes CAFÉ FILHO e CARLOS LUZ. Conte-se a revolta fracassada contra a posse de João Goulart, duas quarteladas amazônicas, uma revolta de sargentos em Brasília e a baderna dos marinheiros, chega-se a sete tumultos, um a cada 36 meses. Na ordem dos generais, comandantes de guarnições da Vila ameaçaram rebelar-se em 1965 contra Castello, em 68 contra Costa e Silva, e em 69, durante os dias da escolha de seu sucessor, a oficialidade entrou em estado de anarquia. Em menos de seis anos, foram três as desordens, uma a cada 22 meses.

Nos primeiros meses do governo Castello Branco, por sua noção de ditadura temporária e pela entrada dos militares como agentes do poder coercitivo, instalaram-se os elementos de desordem que envenenariam a vida política brasileira nos vinte anos seguintes. A direita brasileira precipitou o Brasil na ditadura porque construiu um regime que, se tinha a força necessária para desmobilizar a sociedade intervindo em sindicatos, aposentando professores e magistrados, prendendo, censurando e torturando, não a teve para disciplinar os quartéis que garantiam a desmobilização. Essa contradição matou a teoria castelista da ditadura temporária, em seguida liquidou as promessas inconsistentes de abertura política feitas por COSTA E SILVA, ou falsas, como a de Garrastazú MÉDICI. Restabeleceu-se a ordem com Geisel porque ele foi o único a perceber que, antes de qualquer projeto político, era preciso restabelecer a ordem militar.

Os acontecimentos posteriores a 1968, quando o regime assumiu sua natureza ditatorial por meio do AI-5, fizeram que se desse pouca importância à natureza da violência aparecida em 64 e à forma como ela foi enfrentada pelo governo Castello Branco. O governo do marechal Castello Branco foi colocado diante da questão da tortura bem depois do fragor da hora. Em julho de 1964, os cárceres começaram a gritar. Uma das primeiras denúncias acusava a presença de torturadores no quartel do 1° Batalhão de Polícia do Exército, em São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Por dois meses publicaram-se denúncias esparsas na imprensa, até que no dia 1° setembro o Correio da Manhã abriu em suas páginas com um editorial em que pressionava o governo para que rompesse a silenciosa cumplicidade que oferecia ao crime. A partir desse artigo, o Correio passou a estampar diariamente denúncias de torturas. No coração do regime, o general Golbery apontou ambígua e timidamente o fenômeno da tortura, vista como uma consequência da linha dura.

A campanha aberta em setembro pelo Correio da Manhã produziu um resultado visível. O presidente Castello Branco enviou Geisel numa viagem pelo Nordeste, Rio de Janeiro e São Paulo para avaliar pessoalmente a procedência das denúncias. A chamada MISSÃO GEISEL pôs os torturadores na defensiva, era um sinal de que Castello queria jogar sério. Acompanhado por dois oficiais, Geisel percorreu quartéis e prisões.

A construção de uma relação estável entre o regime, as Forças Armadas, a repressão política e os direitos humanos exigia que, tendo havido a tortura, a investigação terminasse com a punição dos culpados. O que o Correio da Manhã e os políticos oposicionistas conduziam era uma campanha, mas era na tortura que estava o fenômeno político. Mobilizando suas energias políticas contra a “campanha”, e não contra a tortura, o regime de 1964, por vinte anos, comportou-se como se o combate à tortura não fizesse parte da luta em defesa dos direitos do homem. Negar a tortura significava defender o regime. Denunciá-la ou confirmá-la era atacá-lo. Geisel também via a essência do problema nas denúncias da imprensa, e não no que se denunciava.

A missão resultara no compromisso que Castello e Geisel perseguiam: esquecia-se o passado, e começava-se vida nova, sem torturas. Durante todo o ano de 1964 as denúncias de torturas feitas em juízos militares foram 203. Em 1965 baixaram para 84 e no ano seguinte caíram para 66. Dentro do aparelho burocrático, porém, passara-se a senha da impunidade. E não só da impunidade. Como o tempo haveria de mostrar, a repressão tornava-se um dos instrumentos burocráticos de ascensão e ampliação do poder.

A Missão Geisel quis ser um compromisso liberal do governo, mas resultou num acerto que em vez de desarticular a tortura, perdoou-a. A conciliação de setembro de 1964 danificou a consciência da cúpula militar pela sensação que ofereceu de ter salvado simultaneamente a pele de muitos presos e a farda dos torturadores. Alimentou a lenda cultivada pelas Forças Armadas segundo a qual, mesmo dirigindo regimes repressivos, mantinham-se distantes dos crimes neles praticados.

Diante do radicalismo policial do regime que presidia, Castello chegara a desabafar que “não é elegante para um coronel […] judiar com um civil, isso se fazia na 4ª Delegacia, no Estado Novo”. Sua política, momentaneamente bem-sucedida, começara a levar as Forças Armadas para dentro daquilo que durante o Estado Novo ele, como coronel, acreditara ser o mundo repugnante da arbitrariedade da “4ª Delegacia”.

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Bibliografia:

GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.

Rolf Amaro

Nascido em 83, formado em Ciências Sociais, músico, sempre ando com um livro na mão. E a Ana,minha senhora, na outra.

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