A característica comum a todos os sistemas coletivistas é a organização intencional das atividades da sociedade em função de um objetivo social definido. Os vários gêneros de coletivismo – comunismo, fascismo etc. – se distinguem do liberalismo e do individualismo por pretenderem organizar a sociedade inteira e todos os seus recursos visando a essa finalidade única. O “objetivo social” ou o “propósito comum” para o qual se pretende organizar a sociedade costuma ser definido como o “bem comum”, o “bem-estar geral” ou o “interesse comum”. A direção de todas as nossas atividades de acordo com um plano único pressupõe a existência de um código ético completo, em que todos os diferentes valores humanos estejam colocados em seu devido lugar.
Tal código ético completo não existe. Além de não possuirmos uma escala que inclua todos os valores, seria impossível a qualquer intelecto abarcar a infinita gama de necessidades diferentes de diferentes indivíduos e atribuir um peso definido a cada uma delas.
Este é o fato fundamental em que se baseia a filosofia do individualismo. Ela parte do fato de que os limites dos nossos poderes de imaginação nos impedem de incluir em nossa escala de valores mais que uma parcela das necessidades da sociedade inteira; só existem escalas parciais de valores, as quais são inevitavelmente distintas entre si e mesmo conflitantes. Daí concluem os individualistas que se deve permitir ao indivíduo, dentro de certos limites, seguir seus próprios valores e preferências em vez dos de outrem. É o reconhecimento do indivíduo como juiz supremo dos próprios objetivos que constitui a essência da visão individualista.
Quando os indivíduos se aliam num esforço conjunto para realizar objetivos que possuem em comum, são conferidos às organizações por eles formadas para este fim, como por exemplo o estado, um sistema próprio de objetivos e seus próprios meios de ação. Entretanto, qualquer organização assim constituída tem a sua esfera separada e limitada, dentro da qual seus objetivos serão supremos. Os limites dessa esfera são determinados pelo grau de consenso dos indivíduos acerca de objetivos específicos; e a probabilidade de que eles concordem sobre determinada linha de ação diminui à proporção que se amplia o âmbito da mesma.
Não é difícil perceber o que acontece quando a democracia dá início a uma linha de planejamento cuja execução exige um consenso muito maior do que na realidade existe. É possível que o povo tenha concordado com a adoção de um sistema de economia planificada. Verificar-se-á que há consenso sobre a conveniência de planejamento, mas não sobre os fins que o plano deve atender.
Pode ocorrer que a vontade unânime do povo exija que o parlamento apresente um plano econômico abrangente, mas que nem o povo nem seus representantes cheguem a um acordo a respeito de qualquer plano específico. A incapacidade das assembleias democráticas de pôr em prática o que parece um evidente mandato do povo ocasionará inevitável descontentamento com as instituições democráticas. Cresce a convicção de que, para se realizar um planejamento eficaz, a gestão econômica deve ser afastada da área política e confiada a especialistas – funcionários permanentes ou organismos autônomos e independentes. Essa ineficácia deve ser atribuída às contradições implícitas na tarefa que lhes é confiada. Não lhes é solicitado que tomem providências acerca dos casos em que pode haver acordo, mas que cheguem a um acordo a respeito de tudo – isto é, da gestão total dos recursos do país.
Entretanto, o sistema de decisão por maioria não é apropriado a essa tarefa. A essência do problema econômico está em que a elaboração de um plano envolve a escolha entre finalidades conflitantes ou que competem entre si – diferentes necessidades de pessoas diversas. Mas só aqueles que conhecem todos os fatos saberão quais são os objetivos que realmente conflitam, e quais os que terão de ser sacrificados em benefício de outros – em suma, entre que alternativas é preciso escolher. E apenas eles, os especialistas, estão em condições de decidir qual dos diferentes objetivos terá de ser prioritário. É inevitável, assim, que eles imponham a sua escala de preferência à comunidade para a qual planejam.
A concordância quanto à necessidade do planejamento, juntamente com a incapacidade das assembleias democráticas de apresentarem um plano, suscitará pressões cada vez maiores no sentido de que se conceda ao governo ou a algum indivíduo poderes para agir sob sua própria responsabilidade. Aumenta cada vez mais a convicção de que, se quisermos resultados, devemos libertar as autoridades responsáveis dos grilhões representados pelas normas democráticas.
Na Alemanha, mesmo antes de Hitler subir ao poder, o avanço nesse sentido já havia sido significativo. Muito antes de 1933, a Alemanha alcançara um estágio em que não lhe restava senão ser governada de forma ditatorial. Hitler não precisou destruir a democracia; limitou-se a tirar proveito da sua decadência e no momento crítico conseguiu o apoio de muitos que, embora o detestassem, consideravam-no o único homem bastante forte para pôr as coisas em marcha.
Os defensores do planejamento tentam em geral fazer-nos aceitar que, enquanto a democracia mantiver o controle supremo, os seus princípios essenciais não serão afetados.
Esta ideia não leva em conta uma distinção de vital importância. O parlamento pode controlar a execução de tarefas às quais possa imprimir uma orientação definida, sobre cujo objetivo tenha concordado antecipadamente e em que se limite a delegar a execução dos detalhes. Mas a situação é diversa quando os poderes são delegados porque não existe verdadeiro acordo sobre as finalidades; quando o órgão encarregado do planejamento tem de escolher entre finalidades de cujos pontos conflitantes o parlamento nem sequer está informado; e quando a única solução é apresentar-lhe um plano que tem de ser aceito ou rejeitado como um todo. O debate parlamentar pode mesmo impedir alguns abusos flagrantes e insistir com êxito para que determinadas falhas sejam sanadas. No entanto, o parlamento não pode gerir. Na melhor das hipóteses, será reduzido a escolher as pessoas que devem ser investidas de poderes quase absolutos.
A democracia exige que as possibilidades de controle consciente se restrinjam aos campos em que existe verdadeiro acordo, e que, em certos campos, se confie no acaso: este é o seu preço. Mas numa sociedade cujo funcionamento está subordinado ao planejamento central não se pode fazer com que esse controle dependa da possibilidade de um acordo de maioria; muitas vezes será necessário impor ao povo a vontade de uma pequena minoria, porque esta constitui o grupo mais numeroso capaz de chegar a um acordo sobre a questão em debate. O grande mérito da doutrina liberal é ter reduzido a gama de questões que dependem de consenso a proporções adequadas a uma sociedade de homens livres.
A planificação conduz à ditadura porque esta é o instrumento mais eficaz de coerção e de imposição de ideais, sendo, pois, essencial para que o planejamento em larga escala se torne possível. O conflito entre planificação e democracia decorre do fato de que esta constitui um obstáculo à supressão da liberdade exigida pelo dirigismo econômico. Mas ainda que a democracia deixe de ser uma garantia da liberdade individual, mesmo assim ela pode subsistir de algum modo num regime totalitário. Guardando embora a forma democrática, uma verdadeira “ditadura do proletariado” que dirigisse de maneira centralizada o sistema econômico provavelmente destruiria a liberdade pessoal de modo tão definitivo quanto qualquer autocracia.
É injustificado supor que, enquanto o poder for conferido pelo processo democrático, ele não poderá ser arbitrário. Essa afirmação pressupõe uma falsa relação de causa e efeito: não é a fonte do poder, mas a limitação do poder, que impede que este seja arbitrário. O controle democrático pode impedir que o poder se torne arbitrário, mas a sua mera existência não assegura isso. Se uma democracia decide empreender um programa que implique necessariamente o uso de um poder não pautado por normas fixas, este se tornará um poder arbitrário.
Bibliografia:
HAYEK, Friedrich August. O Caminho da servidão. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.
Para ler a íntegra do capítulo, clique aqui.