Se o socialismo substituiu o liberalismo como a doutrina da grande maioria dos progressistas, isso não significa apenas que as pessoas tenham esquecido as advertências dos grandes pensadores liberais sobre as consequências do coletivismo.
Tal fato ocorreu porque elas passaram a acreditar exatamente no contrário daquilo que esses pensadores haviam predito. Quase não nos ocorre hoje que o socialismo era, de início, francamente autoritário. Os autores franceses que lançaram as bases do socialismo moderno não tinham dúvida de que suas ideias só poderiam ser postas em prática por um forte governo ditatorial. Para eles o socialismo significava uma tentativa de “acabar com a Revolução” por meio de uma reorganização intencional da sociedade em moldes hierárquicos e pela imposição de um “poder espiritual” coercitivo.
Foi apenas sob a influência das fortes correntes democráticas que antecederam a revolução de 1848 que o socialismo começou a aliar-se às forças da liberdade. Mas o novo “socialismo democrático” precisou de muito tempo para vencer as suspeitas despertadas pelos seus antecedentes.
Para afastar essas suspeitas e atrelar a si o mais forte de todos os incentivos políticos – o anseio de liberdade – o socialismo começou a utilizar com maior frequência a promessa de uma “nova liberdade”. O advento do socialismo seria um salto do reino da necessidade para o reino da liberdade. Ele traria a “liberdade econômica”, sem a qual a liberdade política já obtida “de nada serviria”. Somente o socialismo seria capaz de pôr termo à luta secular pela liberdade, na qual a conquista da liberdade política era apenas um primeiro passo.
É importante perceber a sutil alteração de sentido a que se submeteu a palavra liberdade para tornar plausível este argumento. Para os grandes apóstolos da liberdade política, essa palavra significava que o indivíduo estaria livre da coerção e do poder arbitrário de outros homens. Na nova liberdade prometida, porém, o indivíduo se libertaria da necessidade, da força das circunstâncias que limitam inevitavelmente o âmbito da efetiva capacidade de escolha de todos nós, embora o de alguns muito mais do que o de outros. Para que o homem pudesse ser verdadeiramente livre, o “despotismo da necessidade material” deveria ser vencido, e atenuadas “as restrições decorrentes do sistema econômico”.
A reivindicação da nova liberdade não passava, assim, da velha reivindicação de uma distribuição equitativa da riqueza. Sem dúvida a promessa de maior liberdade tornou-se uma das armas mais eficazes da propaganda socialista, e por certo a convicção de que o socialismo traria a liberdade é autêntica e sincera. Mas essa convicção apenas intensificaria a tragédia se ficasse demonstrado que aquilo que nos prometiam como o caminho da liberdade era na realidade o caminho da servidão. O socialismo foi aceito pela maior parte da intelligentsia como o herdeiro aparente da tradição liberal: não surpreende, pois, que seja inconcebível aos socialistas a ideia de tal sistema conduzir ao oposto da liberdade.
Nos últimos anos, todavia, os antigos temores quanto às consequências imprevistas do socialismo voltaram a ser enfaticamente manifestados nas esferas mais inesperadas. Os mais diversos observadores têm-se impressionado com a extraordinária semelhança, em muitos aspectos, das condições de vida nos regimes fascista e comunista.
Enquanto os “progressistas” na Inglaterra e em outros países ainda se iludiam julgando que comunismo e fascismo eram polos opostos, um número cada vez maior de pessoas começava a indagar se essas novas tiranias não seriam o resultado das mesmas tendências. Os próprios comunistas devem ter ficado um tanto abalados com depoimentos como o de Max Eastman, velho amigo de Lênin, compelido a admitir que “ao invés de melhor, o stalinismo é pior que o fascismo, mais cruel, bárbaro, injusto, imoral, antidemocrático, e sem a atenuante de qualquer esperança ou escrúpulo”, de sorte que “seria mais correto defini-lo como superfascista”.
O caso de Max Eastman é talvez o mais notável: contudo, ele não é absolutamente o primeiro nem o único simpatizante da experiência russa a formular semelhantes conclusões. Podemos encontrar, nas publicações destes últimos anos, afirmações formuladas por homens que, como cidadãos de países agora totalitários, viveram o período da transformação e foram compelidos a revisar muitas convicções que antes acalentavam.
Não menos significativa é a história intelectual de muitos líderes nazistas e fascistas. Todos os que têm observado a evolução desses movimentos na Itália ou na Alemanha surpreenderam-se com o número de líderes, começando por Mussolini, que a princípio foram socialistas e acabaram se tornando fascistas ou nazistas.
E o que ocorreu com os líderes – ocorreu muito mais com os liderados. A relativa facilidade com que um jovem comunista podia converter- se em nazista ou vice-versa era notória na Alemanha, sobretudo para os propagandistas dos dois partidos. Na década de 1930, muitos professores universitários conheceram estudantes ingleses e norte-americanos que, regressando do continente europeu, não sabiam ao certo se eram comunistas ou nazistas – sabiam apenas que detestavam a civilização liberal do Ocidente.
É verdade que na Alemanha, antes de 1933, e na Itália, antes de 1922, comunistas e nazistas ou fascistas entravam mais frequentemente em conflito entre si do que com os outros partidos. No entanto, seu modo de agir demonstrava quão semelhantes são, de fato. Para ambos, o verdadeiro inimigo era o liberal da velha escola. Enquanto o nazista para o comunista, o comunista para o nazista, e para ambos o socialista, são recrutas em potencial, terreno propício à sua pregação, eles sabem que é impossível qualquer tipo de entendimento com os que realmente acreditam na liberdade individual.
Não há dúvida de que a maior parte dos socialistas ingleses ainda crê profundamente no ideal liberal de liberdade, e recuaria caso se convencesse de que a realização de seu programa implicaria a destruição da liberdade. O problema é tão pouco compreendido que assistimos hoje a sérios debates sobre conceitos expressos em termos contraditórios, como o de “socialismo individualista”. Se é esta a atitude mental que nos está levando para um novo mundo, nada será mais urgente do que examinarmos com seriedade o verdadeiro significado da evolução dos acontecimentos em outros países. O socialismo democrático, a grande utopia das últimas gerações, não só é irrealizável, mas o próprio esforço necessário para concretizá-lo gera algo tão inteiramente diverso que poucos dos que agora o desejam estariam dispostos a aceitar suas consequências. No entanto, tais evidências não serão aceitas enquanto essa relação de causa e efeito não for explicitada em todos os seus aspectos.
Bibliografia:
HAYEK, Friedrich August. O Caminho da servidão. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.