É preciso esclarecer um equívoco, que diz respeito ao conceito de socialismo; ele pode significar os ideais de justiça social, maior igualdade e segurança, que são os fins últimos do socialismo.
Mas significa também o método pelo qual a maior parte dos socialistas espera alcançar esses fins. Nesse sentido, socialismo equivale à abolição da iniciativa privada e da propriedade privada dos meios de produção, e à criação de um sistema de “economia planificada” no qual o empresário que trabalha visando ao lucro é substituído por um órgão central de planejamento.
Muitos se definem socialistas, embora considerem apenas a primeira acepção do termo sem contudo cogitar nem entender a maneira de alcançá-los. Por outro lado, muitos que, como os socialistas, prezam os fins últimos dessa doutrina, recusam-se a apoiá-la por estarem convencidos de que os métodos propostos pelos socialistas põem em perigo outros valores. O debate em torno do socialismo tornou-se dessa forma em grande parte um debate sobre meios e não sobre fins.
Isso já seria suficiente para criar confusão. A situação torna-se mais complexa porque o mesmo meio – a “planificação econômica”, principal instrumento da reforma socialista – pode ser utilizado para vários outros fins. Se quisermos realizar uma distribuição da renda conforme as ideias correntes de justiça social, torna-se imperativo centralizar a direção da atividade econômica. Mas essa planificação não será menos indispensável se a distribuição da renda for efetuada de modo oposto ao que reputamos justo. Se pretendêssemos, por exemplo, que uma elite racial, os nórdicos, os membros de um partido ou uma aristocracia fossem beneficiados por uma maior parcela de bens e amenidades, os métodos que seríamos obrigados a empregar seriam os mesmos que empregaríamos para assegurar uma distribuição igualitária.
Talvez possa parecer injusto empregar o termo “socialismo” para designar os métodos e não as suas finalidades. Seria preferível talvez chamar de coletivismo os métodos que podem ser usados para uma grande variedade de fins, e considerar o socialismo uma espécie desse gênero. No entanto, não devemos esquecer que o socialismo é uma espécie de coletivismo e que, portanto, tudo o que se aplica ao coletivismo se aplica também ao socialismo. Todas as consequências de que trataremos neste livro decorrem dos métodos coletivistas, independentemente dos fins para os quais são usados.
Os problemas causados pela ambiguidade na linguagem política comum não desaparecerão, seja qual for a finalidade do planejamento. O significado do termo tornar-se-á mais preciso se deixarmos claro que por ele entendemos a espécie de planejamento necessário à realização de qualquer ideal distributivo. Mas como a ideia de planejamento econômico central seduz em grande parte pela própria indefinição de seu significado, é indispensável estabelecer-lhe o sentido preciso antes de discutirmos suas consequências.
O conceito de “planejamento” deve sua popularidade ao fato de todos desejarmos tratar os problemas ordinários da forma mais racional e de, para tanto, precisarmos utilizar toda a capacidade de previsão possível. Mas não é nesse sentido que nossos entusiastas de uma sociedade planejada empregam atualmente esse termo. O que nossos planejadores exigem é um controle centralizado de toda a atividade econômica de acordo com um plano único, que estabeleça a maneira pela qual os recursos da sociedade sejam “conscientemente dirigidos” a fim de servir a finalidades determinadas.
O debate entre os planejadores modernos e os seus adversários, por conseguinte, não visa a estabelecer se devemos ou não escolher racionalmente entre as várias formas possíveis de organização da sociedade. Busca determinar se os detentores do poder coercitivo devem limitar-se a criar condições em que os indivíduos possam planejar com o maior êxito; ou se a utilização racional dos nossos recursos exige uma direção e organização central de todas as nossas atividades segundo algum “projeto” elaborado para este fim. E esta permanece a questão sobre a qual discordam planejadores e liberais. A doutrina liberal é a favor do emprego mais efetivo das forças da concorrência como um meio de coordenar os esforços humanos. E considera a concorrência um método superior, sobretudo por ser o único método pelo qual nossas atividades podem ajustar-se umas às outras sem a intervenção coercitiva ou arbitrária da autoridade.
Proibir o uso de substâncias tóxicas ou exigir precauções especiais para a sua utilização, limitar as horas de trabalho ou requerer certas disposições sanitárias, é inteiramente compatível com a manutenção da concorrência. A manutenção da concorrência tampouco é incompatível com um amplo sistema de serviços sociais desde que a organização de tais serviços não torne ineficaz a concorrência em vastos setores da vida econômica.
Criar as condições em que a concorrência seja tão eficiente quanto possível, complementar-lhe a ação quando ela não o possa ser, fornecer os serviços que; nas palavras de ADAM SMITH, “embora ofereçam as maiores vantagens para a sociedade, são contudo de tal natureza que o lucro jamais compensaria os gastos de qualquer indivíduo ou pequeno grupo de indivíduos”, são as tarefas que oferecem na verdade um campo vasto e indisputável para a atividade estatal. Em nenhum sistema racionalmente defensável seria possível o estado ficar sem qualquer função. Um sistema eficaz de concorrência necessita, como qualquer outro, de uma estrutura legal elaborada com inteligência e sempre aperfeiçoada.
Contudo, a criação de uma estrutura adequada ao funcionamento benéfico da concorrência estava longe de ser completada quando, em toda a parte, os estados começaram a substituí-la por um princípio diferente e inconciliável. Já não se tratava de fazer funcionar a concorrência e de complementar-lhe a ação, mas de suplantá-la inteiramente. Foi a propaganda socialista em favor da planificação que restaurou a respeitabilidade da oposição à concorrência.
A luta universal contra a concorrência promete gerar algo ainda pior: uma situação na qual a concorrência é mais ou menos suprimida, mas o planejamento fica nas mãos de monopólios independentes, controlados por cada setor da economia. Eliminando a concorrência de modo gradual em cada setor da economia, essa política deixa o consumidor à mercê da ação monopólica conjunta dos capitalistas e dos trabalhadores dos setores melhor organizados. Esse planejamento independente realizado por monopólios econômicos produziria, na realidade, efeitos opostos aos visados pela própria ideia de planejamento.
Uma vez alcançado esse estágio, a única alternativa para a volta ao sistema de concorrência é o controle dos monopólios pelo estado, controle que, para ser eficaz, deve tornar-se cada vez mais completo e minucioso. É deste estágio que nos estamos rapidamente aproximando.
Se, todavia, estamos nos aproximando rapidamente da centralização absoluta da gestão da atividade econômica, é porque muitos ainda acreditam que seja possível encontrar um meio-termo entre a concorrência “atomística” e o dirigismo central. Contudo, embora a concorrência consiga suportar certo grau de controle governamental, ela não pode ser harmonizada em qualquer escala com o planejamento central sem que deixe de operar como guia eficaz da produção. Quando incompletos, tanto a concorrência como o dirigismo central se tornam instrumentos fracos e ineficientes e, se combinados, nenhum dos dois funcionará efetivamente e o resultado será pior do que se tivéssemos aderido a qualquer dos dois sistemas.
Para que o leitor compreenda a tese defendida neste trabalho, é preciso ter em mente que a nossa crítica visa exclusivamente ao planejamento que pretende substituir a concorrência. Mas como, no uso corrente, “planejamento” tornou-se quase sinônimo de planificação contra a concorrência, será algumas vezes inevitável, por razões de concisão, designá-lo apenas como planejamento, embora isso importe deixar aos nossos adversários um excelente termo que mereceria melhor aplicação.
Bibliografia:
HAYEK, Friedrich August. O Caminho da servidão. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.