Resumo de Migrações e Diferenciações Étnicas e Linguísticas, capítulo 11 de História Geral da África, obra organizada pela UNESCO. Boa leitura!
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Durante muito tempo, os historiadores acreditaram que os povos da África não haviam desenvolvido uma história autônoma. Tudo o que representava uma aquisição cultural parecia ter sido levado até eles do exterior por vagas migratórias vindas da Ásia. Essas teses são encontradas com frequência nos trabalhos de muitos pesquisadores europeus do século XIX. Após a partilha do continente africano entre potências imperialistas, começaram a aparecer em profusão na Inglaterra, França e Alemanha trabalhos que descreviam a vida e os costumes dos povos colonizados.
As teorias da escola alemã e as descobertas recentes
A Alemanha ocupava um lugar de destaque nos estudos históricos, etnográficos e linguísticos africanos, no período que precedeu imediatamente a Primeira Guerra Mundial. Assim, os etnógrafos da Europa ocidental, no início do século XX, permaneceram apegados à ideia difundida pelos alemães de que os povos da África nunca tinham tido história própria. Com base nesse ponto de vista, os linguistas formularam a teoria conhecida como Camítica, segundo a qual o desenvolvimento da civilização na África foi devido à influência de povos camíticos provenientes da Ásia.
Os estudiosos europeus tinham por indiscutível a ideia de que a Ásia, berço da humanidade, foi lugar de origem de todos os povos que invadiram a Europa e a África. Assim, parecia evidente para o etnógrafo inglês Stow que os mais antigos habitantes da África – os San – tivessem vindo da Ásia em duas vagas migratórias distintas, os San pintores e os San gravadores. No fim do século XIX e início do XX, foi lançada uma vigorosa ofensiva contra a doutrina evolucionista, que constituiu a base teórica dos trabalhos de R. Taylor, L. H. Morgan, Lubbock e outros. A escola de orientação histórico-cultural repudiou a teoria de um desenvolvimento uniforme e integral da humanidade. Segundo esses autores, a difusão de aquisições culturais deveu-se principalmente às migrações.
No período entre as duas guerras, contudo, essa teoria deveria desmoronar. O primeiro golpe veio com a descoberta do Australopithecus, na província do Cabo (África do Sul), em 1924. Seguiram-se outras descobertas, que prosseguem ainda, tanto no norte como no sul da África, e em particular no leste, na Tanzânia, no Quênia e na Etiópia. Todos esses documentos demonstram, de maneira cabal, que o desenvolvimento do homem em toda a sua variedade racial teve lugar, desde as origens, no interior do continente africano. Assim, a teoria segundo a qual a África foi povoada por vagas migratórias provenientes do exterior tornou-se insustentável.
Não há mais sombra de dúvida quanto à antiguidade dos vestígios arqueológicos, uma vez que a cronologia relativa (baseada na forma e no tratamento dos objetos e em sua posição estratigráfica) é atualmente complementada pela cronologia absoluta, baseada em métodos cronométricos científicos, tais como o carbono 14 e o potássio-argônio.
Problemas antropológicos e linguísticos
Em geral, os indicadores antropológicos fornecem referências mais estáveis que os fatos da língua, que sofrem transformações rápidas, por vezes no espaço de algumas gerações. Assim, observa-se que a população negra norte-americana manteve praticamente intacto seu tipo antropológico original, enquanto do ponto de vista linguístico e cultural assemelha-se à população branca dos Estados Unidos. Os elementos da antiga civilização africana subsistem apenas nos domínios cultural e espiritual: música, dança e crenças religiosas.
A história das línguas faladas pelos autóctones da África do Norte também merece ser citada. Após a conquista dos países do Magreb pelos árabes, e particularmente após as invasões das “tribos” árabes no século XI, os povos da África do Norte tornaram-se árabes quanto à língua e à civilização. De acordo com os antropólogos, as principais características do tipo físico original não sofreram mudanças, o que mostra que os traços antropológicos, em seu conjunto, resguardam-se da influência do biótopo no organismo, sendo, portanto, mais estáveis que os elementos da língua e da cultura.
Na medida em que os perfis antropológicos apresentam uma constância notável, frequentemente multimilenária, não é errôneo extrapolar para a pré-história algumas das principais características do quadro étnico atual. De qualquer modo, o processo de formação das “raças” é a resultante de uma interação de múltiplos fatores, que produzem, de maneira gradual, a diferenciação dos traços herdados, mas também transmitem hereditariamente os traços diferenciados. Estes se individualizaram essencialmente em função da adaptação ao meio ambiente: insolação, temperatura, cobertura vegetal, umidade, etc. Como regra geral, os antropólogos supõem que o africano da floresta tinha estatura baixa e pele clara, enquanto o africano da savana e do Sahel seria esguio e de pele escura. Entretanto, cabe evitar uma visão parcial, já que muitos fatores operam simultaneamente. Por exemplo, a migração de grupos com heranças genéticas diferentes mobilizava, imediatamente, duas fontes possíveis de mutação: primeiro, a mudança de biótipo, em seguida, o encontro de grupos diferentes, com a possibilidade de cruzamento.
Atualmente, o mapa linguístico da África não coincide com a distribuição dos tipos “raciais”, embora tal concordância possa ter ocorrido num passado remoto. Mas durante um longo período os antigos grupos étnicos se multiplicaram, migraram e se cruzaram, não mais havendo coincidência entre a evolução linguística e o processo de formação dos tipos “raciais”. Por processo de formação de tipos “raciais” entende-se a herança genética e a gradual adaptação ao meio ambiente.
Nas savanas do Sudão, povos que falavam línguas com classes nominais em que as diferenças de tonalidade tinham um papel importante, aparentemente coexistiram durante longo tempo. À medida que o Saara se dessecava, esses povos se retiravam para áreas mais úmidas: as montanhas do norte, o vale do Nilo a leste, e o grande lago paleochadiano ao sul. Esses grupos de caçadores e criadores de gado suplantaram os povos autóctones, que foram forçados a se retirar para o sul, penetrando a floresta ou contornando-a pelo leste. O conhecimento de metalurgia que possuíam os povos recém-chegados conferia-lhes vantagem sobre os autóctones. As jazidas de cobre assim como o trabalho antigo deste metal situam-se na mesma região que foi identificada por Guthrie como o ponto focal do domínio bantu, onde as línguas luba e bemba apresentam a maior porcentagem de palavras pertencentes ao vocabulário “comum a todas as línguas bantu”. O desenvolvimento da manufatura do cobre impulsionou a posterior expansão da civilização. Quanto maior a distância do ponto focal, menor a pureza do tipo linguístico bantu, pois, na medida dessa distância, aumenta a miscigenação dos povos de língua bantu com povos de outras línguas.
Esse caso específico nos mostra que os conceitos de língua, tipo antropológico e civilização nunca devem ser confundidos, mas que, no povoamento gradual do continente por diferentes grupos humanos, o modo de produção deve ter frequentemente atuado como vetor principal da expansão linguística e mesmo da predominância de determinadas características biológicas.
Bibliografia:
OLDEROGGE, Dmitri. Migrações e diferenciações étnicas e linguísticas. In: História geral da África, I: Metodologia e pré-história da África. 2.ed – Brasília: UNESCO, 2010.