Útil ou inútil, o protesto dos escravos deve ser feito conforme a natureza das obrigações contraídas para com eles. O nosso argumento refere-se por enquanto aos escravos que nem por si nem por suas mães têm direito à liberdade fundados numa lei expressa. É escusado dizer-se que estes são todos brasileiros de nascimento.
Os fatos em que estes podem haver fundado uma esperança datam de pouco antes da LEI DE 28 DE SETEMBRO DE 1871. Esses compromissos nacionais com relação aos escravos existentes são principalmente os seguintes: a alforria de escravos para a GUERRA DO PARAGUAI; a FALA DO TRONO de 1867, e a correspondência entre os abolicionistas europeus e o governo imperial; a ação pessoal do CONDE D’EU no Paraguai como general em chefe do Exército; a conexão da emancipação anunciada com o fim da guerra; a elaboração do projeto de emancipação no Conselho de Estado; a agitação do Partido Liberal consecutivamente à organização do ministério Itaboraí, a queda desse ministério e a subida do gabinete São Vicente; a oposição à proposta Rio Branco; os vaticínios da dissidência; a guerra organizada contra o governo e o imperador pela lavoura do Sul; a própria lei de 28 de setembro de 1871, interpretada pelos que a defenderam e a sustentaram, e as perspectivas de futuro abertas durante a discussão.
Sem entrar nos detalhes de cada um desses pontos históricos, é possível apontar a relação entre todos eles e a sorte dos escravos.
O efeito do DECRETO DE 6 DE NOVEMBRO DE 1866 que concedeu gratuitamente liberdade aos escravos da nação que pudessem servir ao Exército foi um desses efeitos que se não podem limitar ao círculo onde diretamente se exercem. Nenhum povo pode intencionalmente rebaixar os que estão encarregados de defendê-lo, os que fazem profissão de manter a integridade, a independência e a honra nacional. Por isso não era o Exército que o governo humilhava indo buscar soldados nas fileiras dos escravos; eram os escravos todos que ele elevava. A significação de tais fatos não podia ser outra para a massa dos escravos brasileiros senão que o Estado procuraria no futuro fazer cidadãos os companheiros daqueles que tinham ido morrer pela pátria.
A Fala do Trono de 22 de maio de 1867 prende-se intimamente a dois outros que representam importante papel em nossa história: a mensagem da junta de emancipação em França ao imperador e a resposta do ministro da Justiça em nome deste e do governo brasileiro. A segunda dessas peças humanitárias foi assinada pelo conselheiro Martim Francisco e a primeira pelos abolicionistas franceses.
Nessa mensagem diziam esses homens: “(…) uma vontade de Vossa Majestade pode produzir a liberdade de dois milhões de homens”. Na resposta, o ministro da Justiça escreve: “A emancipação dos escravos, conseqüência necessária da abolição do tráfico, é somente uma questão de forma e oportunidade. Quando as penosas circunstâncias em que se acha o país o consentirem, o governo brasileiro considerará como objeto de primeira importância a realização do que o espírito do cristianismo desde há muito reclama do mundo civilizado”.
Aí está um compromisso tomado perante a Europa em 1867 a favor de dois milhões de homens, os quais estão ainda esperando que o Estado descubra a forma e encontre a oportunidade de realizar o que o espírito do cristianismo desde há muito reclama do mundo civilizado, e que este já realizou com exceção apenas do Brasil.
A iniciativa tomada contra a escravidão no Paraguai pelo conde d’Eu, como general em chefe do nosso Exército, foi outro compromisso aceito à face do mundo. Esse exército era composto em parte de homens que tinham passado pelo cativeiro. Talvez o conde d’Eu não tenha se lembrado disso ao reclamar a emancipação dos escravos na República (paraguaia), nem que os havia em número incomparavelmente maior no Império; mas o mundo não podia esquecer um e outro fato, ao ter conhecimento daquela nobre exigência e do modo como foi satisfeita.
Quanto à esperança proveniente da agitação antes e depois da campanha parlamentar que deu em resultado a lei de 1871, e às promessas depois de feitas, baste-nos dizer que a oposição levantada contra aquele ato devia ter espalhado entre os escravos a crença de que o fim do seu cativeiro estava próximo. Os acessos de furor de muitos proprietários; a linguagem de descrédito usada contra a monarquia nas fazendas; a representação do imperador como sendo o protetor de sua causa; e por fim o naufrágio total da campanha contra o governo; cada uma das diferentes emoções daquela época parecia calculada para infundir no escravo o espírito do homem e insuflar-lhe a liberdade.
Desde o dia em que a Fala do trono do gabinete Zacarias inesperadamente suscitou a formidável questão do elemento servil, até o dia em que passou no Senado a LEI RIO BRANCO, houve um período, para os escravos, cheio de esperança. A subida do visconde de Itaboraí em 1868 significava: ou que o imperador ligava maior importância ao estado do Tesouro que é a reforma servil, ou que em política, na experiência de Dom Pedro II, a linha reta não era o caminho mais curto de um ponto a outro. A chamada do visconde de São Vicente para substituí-lo foi sinal que a reforma da emancipação ia de fato ser tentada; infelizmente o presidente do Conselho organizou um ministério dividido entre si, e que por isso teve que ceder o seu lugar a uma combinação mais homogênea para o fim que a nação e a Coroa tinham em vista. Foi esse o ministério Rio Branco.
Durante todo esse tempo de retrocesso e hesitação, o Partido Liberal, que inscrevera no seu programa em 1869 “a emancipação dos escravos”, agitou por todos os modos o país, no Senado, na imprensa, em conferências públicas. “Adiar indefinidamente a questão”, dizia no Senado aos conservadores naquele ano o senador Nabuco, presidente do Centro liberal, “não é possível que nisto consente o Partido Liberal, (?) que desenganado de que nada fareis há de agitar a questão”.
Como podia a agitação de um dos grandes partidos nacionais em favor dos escravos, deixar de inspirar-lhes a confiança de que a sua liberdade era certa? Tudo o que se disse durante o período da incerteza, quando a oposição tratava de arrancar ao Partido Conservador a reforma que este lhe sonegava constitui outras tantas promessas feitas solenemente aos escravos. Na agitação, falava-se das gerações atuais e das gerações futuras conjuntamente, e na bandeira levantada do Norte ao Sul havia apenas o sinal do combate em uma palavra, emancipação.
Agora vejamos as promessas que se podiam legitimamente deduzir dessa mesma lei de 28 de setembro de 1871. Considerado a princípio como uma espoliação pela aristocracia territorial, aquele ato legislativo tornou-se com o tempo o seu melhor baluarte. Para medir-lhe o alcance é preciso atendermos ao que pensavam então, não os que a fizeram, mas os que a combateram. Nesse caso, a previdência esteve do lado destes; foram eles que mediram verdadeiramente as conseqüências reais da lei, que lhe apontaram as incoerências e os absurdos, e que vaticinaram que essa não podia e não havia de ser, a solução de tão grande problema.
Bibliografia:
NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.
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