Não faz muito tempo que se fala no Brasil em abolicionismo e partido abolicionista. Foi na legislatura de 1879-80 que, pela primeira vez, se viu dentro e fora do Parlamento um grupo de homens fazer da emancipação dos escravos, não da limitação do cativeiro às gerações atuais, a sua bandeira política.
A história das oposições que a escravidão encontrara até então pode ser resumida em poucas palavras. Em 1850, queria-se suprimir a escravidão, acabando com o tráfico; em 1871, libertando-se desde o berço, mas de fato depois dos vinte e um anos, os filhos dos escravos ainda por nascer. Depois se quis suprimi-la, emancipando os escravos em massa e resgatando os ingênuos da servidão da lei do Ventre Livre. É este último movimento que se chama abolicionismo, e só este resolve o verdadeiro problema dos escravos, que é a sua própria liberdade. O abolicionismo é a opinião para a qual todas as transações de domínio sobre entes humanos são crimes que só diferem no grau de crueldade.
A tarefa imediata do abolicionismo é a emancipação dos atuais escravos e seus filhos. A tarefa do futuro é a de apagar todos os efeitos de um regime que, há três séculos, é uma escola de desmoralização e inércia, de servilismo e irresponsabilidade para a casta dos senhores, e que fez do Brasil o Paraguai da escravidão.
Ainda que emancipação total seja decretada amanhã, será ainda preciso desbastar, por meio de uma educação viril e séria, a lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro, de despotismo, superstição e ignorância. Enquanto a nação não tiver consciência de que lhe é indispensável adaptar à liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apropriou, a obra continuará mesmo quando não houver mais escravos.
O abolicionismo é, assim, uma concepção nova em nossa história política, e dele, muito provavelmente, há de resultar a desagregação dos atuais partidos. A política dos nossos homens de Estado foi toda, até hoje, inspirada pelo desejo de fazer a escravidão dissolver-se insensivelmente no país.
O abolicionismo é um protesto contra essa triste perspectiva, de entregar à morte a solução de um problema que é de justiça, de consciência moral e de previdência política. Além disso, o nosso sistema está por demais estragado para poder sofrer impunemente a ação prolongada da escravidão.
O nosso caráter, o nosso temperamento, a nossa organização física, intelectual e moral, acha-se afetada pelas influências com que a escravidão passou trezentos anos a permear a sociedade brasileira. A empresa de anular essas tendências é superior aos esforços de uma só geração.
A palavra escravidão neste livro, além da relação do escravo para com o senhor, significa: a soma do poderio, capital e clientela dos senhores todos; o feudalismo, estabelecido no interior; a dependência em que o comércio, a religião, a pobreza, a indústria, o Parlamento, a Coroa, o Estado, enfim, se acham perante o poder da minoria aristocrática; e por último, o princípio vital que anima a instituição toda, sobretudo no momento em que ela entra a recear pela posse imemorial em que se acha investida, espírito que há sido em toda a história dos países de escravos a causa do seu atraso e da sua ruína.
A luta entre o abolicionismo e a escravidão há de prolongar-se muito. “O Brasil seria o último dos países do mundo, se, tendo a escravidão, não tivesse um partido abolicionista: seria a prova de que a consciência moral ainda não havia despontado nele.” [Thomas José Nabuco]. O Brasil seria o mais desgraçado dos países do mundo, devemos acrescentar, se, tendo um partido abolicionista, esse partido não triunfasse: seria a prova de que a escravidão havia completado a sua obra e selado o destino nacional com o sangue dos milhões de vítimas que fez dentro do nosso território.
Bibliografia
NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.