“A causa que vós, abolicionistas, advogais”, dizem-nos todos os dias, “é uma causa vencida, há muito tempo, na consciência pública.” Esta proposição significa isto: “os escravos serão todos postos em liberdade; não há, portanto, necessidade alguma de um partido abolicionista”.
Mas, quem diz isso tem um único fim – desarmar os defensores dos escravos para que o preço desses não diminua pela incerteza da longa posse que a lei atual promete ao senhor. É claro que, para quem fala assim, os ingênuos são homens livres, não é preciso que alguém tome a si a proteção dessas centenas de milhares de pessoas que são escravos somente até os vinte e um anos de idade, isto é, apenas escravos provisórios. O repugnante espetáculo de uma massa de futuros cidadãos crescendo nas senzalas não preocupa os nossos adversários. Eles não acrescentam à massa dos escravos a massa dos ingênuos, quando inventariam os créditos a longo prazo da escravidão, nem quando lhe arrolam os bens existentes: mas para nós a sorte dos ingênuos é um dos dados, como a dos escravos, de um só problema.
Qual é a esperança de liberdade fundada sobre fatos que o escravo pode alimentar neste momento da nossa história? Cada homem livre que se imagine naquela posição e responda a esta pergunta. Se fosse escravo de um bom senhor, e fosse um bom escravo – ideal que nenhum homem livre poderia inteiramente realizar -, teria sempre esperança de alforria. Mas os bons senhores muitas vezes são pobres e veem-se obrigados a vender o escravo ao mau senhor. Por outro lado, se há proprietários que forram grandes números de escravos, outros há que nunca assinam uma carta de liberdade. A alforria como doação é a sorte de muito poucos; a probabilidade é vaga demais para servir de base sólida a qualquer cálculo de vida e de futuro.
Ponha-se de lado essa esperança de que o senhor lhe dê a liberdade; que porta há na lei para o escravo sair do cativeiro? A lei de 28 de setembro de 1871 abriu-lhe dois caminhos: o do resgate forçado pelo pecúlio, e o do sorteio anual. O primeiro, infelizmente, está em uso nas cidades, não nas fazendas: serve para os escravos urbanos, não para os rurais. Assim mesmo essa abertura daria saída a grande proporção de escravos, se a escravidão não houvesse atrofiado entre nós o espírito de iniciativa, e a confiança em contratos de trabalho. Basta esta prova: um escravo não acha capital suficiente para libertar-se mediante a locação de seus serviços, para mostrar o que é a escravidão como sistema social e econômico. Quanto ao fundo de emancipação do Estado, sujeito, como ponderou no Senado o barão de Cotejipe, a manipulações dos senhores interessados, ver-se-á a insignificante porcentagem que o sorteio abate todos os anos no rol dos escravos. Fora dessas esperanças, que resta aos escravos? Absolutamente nada.
Diariamente lemos anúncios de escravos fugidos denunciados à sede de dinheiro dos capitães-do-mato com detalhes que não ofendem o pudor humano da sociedade que os lê; nas nossas cidades há casas de comissões abertas, mercados e verdadeiros lupanares, sem que a polícia tenha olhos para essa mácula asquerosa; ainda está na memória pública a oposição corajosa de um delegado de polícia da cidade do Rio ao tráfico de escravas para a prostituição; os africanos transportados de Angola e Moçambique depois da lei de 7 de novembro de 1831 estão sempre no cativeiro; as praças judiciais de escravos continuam a substituir os antigos leilões públicos; em suma, a carne humana ainda tem preço. À vista desses fatos, quem ousa dizer que os escravos não precisam de defensores? O senhor julga ainda perpétuo o seu direito sobre o escravo e, como o colocava à sombra do paládio constitucional – o artigo 179 – coloca-se hoje sob a proteção da lei de 28 de setembro.
O escravo ainda é uma propriedade da qual o senhor dispõe como de um cavalo ou de um móvel. Nas cidades, em contato com as diversas influências civilizadoras, ele escapa de alguma forma àquela condição; mas no campo, longe da proteção do Estado, tendo apenas o seu nome de batismo matriculado, quando o tem, no livro da coletoria local, à mercê do temperamento e do caráter do senhor, que lhe dá de esmola a roupa e alimentação que quer, sujeito a ser dado em penhor, a ser hipotecado, a ser vendido, o escravo brasileiro literalmente falando só tem de seu uma coisa – a morte.
Entretanto, não é menos certo que de alguma forma se pode dizer: “A vossa causa, isto é a dos escravos, está moralmente ganha”. Sim, está ganha, mas perante a opinião pública, dispersa, apática, intangível, e não perante o parlamento e o governo, órgãos concretos da opinião; perante a religião, não perante a Igreja; perante a ciência, não perante os corpos científicos, os professores, os homens que representam a ciência; perante a justiça e o direito, não perante a lei que é a sua expressão, nem perante os magistrados, administradores da lei; perante a mocidade irresponsável, que não reconhece as dívidas de opinião que ela contrai, não para a mocidade do outro lado da emancipação civil; perante os partidos, não perante os ministros, os deputados, os senadores, os presidentes de província, os candidatos todos à direção desses partidos, nem perante os eleitores que formam a plebe daquela aristocracia; perante a Europa, mas não perante os europeus estabelecidos no país, que, em grande proporção, ou possuem escravos ou não creem num Brasil sem escravos e temem pelos seus interesses; perante o imperador como particular, não perante o chefe do Estado; resumindo-me, perante jurisdições virtuais, abstrações políticas, simpatias generosas e impotentes, não perante o único tribunal que pode executar a sentença da liberdade da raça negra, isto é, a nação brasileira constituída.
Enquanto a vitória abolicionista não se traduzir pela liberdade lavrada em lei, não provada por sofistas mercenários, mas sentida pelo próprio escravo, semelhante triunfo sem resultados práticos, sem a reparação esperada pelas vítimas da escravidão, não passará de um choque na consciência humana em um organismo paralisado – que já consegue agitar-se, mas ainda não caminhar.
Bibliografia:
NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.
Clique aqui para acessar a integra do texto