Resumo de Introdução e Contextualização, Capítulo 1 de Uma Espiral Elitista de Afirmação Corporativa de Luciana Zaffalon. Boa leitura!
Levando em conta as atribuições da justiça estadual (esfera na qual se processam, por excelência, os conflitos criminais), a pesquisa se propõe a desvelar os processos de politização do Sistema de Justiça do Estado de São Paulo para compreender de que maneira afetam o aprofundamento democrático local. A politização será aqui considerada como a atuação voltada à proteção de determinados grupos, em detrimento de outros.
Nesse sentido, apontamos os imbricamentos verificados entre o Sistema de Justiça e os demais poderes constituídos, em especial o Executivo, como no caso das nomeações de membros das carreiras jurídicas para cargos estratégicos do governo. Tomamos aqui o exemplo da Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança Pública (SSP/SP): os últimos sete secretários estaduais são provenientes do Ministério Público.
Apesar da Constituição Estadual estabelecer como uma das principais atribuições da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP) a apreciação de projetos de lei relativos ao orçamento anual e aos respectivos créditos adicionais do Estado, a prática observada no período abarcado por esta pesquisa é a de transferir ao Poder Executivo a gestão dos cofres públicos, seja via proposição das leis orçamentárias, seja via abertura direta de créditos adicionais, negociados diretamente entre ele e as instituições de justiça. Considerando que o grupo político partidariamente representado pelo PSDB está no poder há mais de 20 anos, é de se supor que esse modus operandi seja longevo.
Assim, propomos o deslocamento do foco das análises que consideram apenas a judicialização da política no equacionamento democrático da separação ideal entre os poderes, para trazer à luz também a agenda do Governo do Estado dentro das instituições de justiça.
O que está em xeque é saber se a mobilização do direito observada na administração da justiça no Estado de São Paulo fomenta a disputa democrática ou se há a propensão à concordância diante das iniciativas do Governo do Estado, enquanto a disputa democrática traria em si uma lógica conflitual, com vista ao consenso.
Esse é o referencial que nos permitirá olhar para os controles exercidos pelo Sistema de Justiça no campo criminal, buscando compreender de que maneira as dinâmicas observadas afetam o aprofundamento democrático local.
1.1.1. Direito, a que será que se destina?
Questionar o papel e os limites do direito é ponto de partida diante da realidade dos Estados de Direito em que vivemos.
Os dados do estudo latino-americano sobre população carcerária, consolidados no relatório “Crime, Segurança Pública e Desempenho Institucional em São Paulo” (BERGMAN et al., 2013), dimensionam o limite prático das amarras emolduradas pelo direito ao destacar o baixíssimo grau de compreensão que os presos informaram ter do que acontecia nas suas audiências e em seus julgamentos. Mais da metade dos presos afirmou não entender nada ou pouco a respeito do que aconteceu nas audiências e no julgamento de seus processos (BERGMAN et al., 2013).
Dimensionar as potencialidades democráticas da administração da justiça passa por compreender os alijamentos que resultam, por exemplo, no grau de compreensão que a população carcerária tem sobre os momentos que transformaram suas vidas, como apresentado acima, e que se colocam como gargalos estruturantes e não apenas como elementos incidentais.
1.1.3. Ouro do tolo – Expansão global do sistema judicial, processos de reforma, legal expertise e elites jurídicas
A pesquisa se insere em um debate que ultrapassa os limites do Estado nacional.
Santos (2010) lembra-nos que observamos, nas últimas décadas, a expansão global do Poder Judiciário, marcada pelo crescente protagonismo social e político do sistema judicial. Ao abandonar o low profile institucional, o Judiciário assume-se como poder político, colocando-se em confronto com os outros poderes do Estado, em especial com o Executivo e sobretudo em três campos: garantia de direitos, controle dos abusos do poder e judicialização da política (SANTOS, 2011).
A contribuição deste trabalho é a proposição de um marco teórico que permita a realização de análises subnacionais. É nesse contexto, e considerando a representatividade do PSDB com relação aos grupos de interesse mobilizados na inédita hegemonia eleitoral do partido em São Paulo, que este trabalho busca compreender como o Sistema de Justiça se orienta frente à autonomia do político na persecução de seus interesses.
1.1.5. Construção – A difícil democracia e a Constituição de 1988
Os desafios aos quais nos lançamos nesta pesquisa tratam da forma como o Sistema de Justiça aplica uma Constituição de vocação contra hegemônica, forjada a partir de princípios democráticos liberais, vigente em um contexto neoliberal que, a despeito da reiterada prevalência do capital financeiro global, não lhe suspendeu formalmente os efeitos. A democracia está sempre em risco diante da potencial prevalência dos poderes econômicos e sociais (de grupos específicos).
Trazemos à baila a forma como o Sistema de Justiça tem tratado a aplicação da legislação que dispõe sobre as drogas consideradas ilegais no país e os efeitos das escolhas judiciais no aumento da população prisional.
Em agosto de 2016 a chamada Lei de Drogas completou 10 anos em vigor no Brasil. A Lei nº 11.343/2006 surge em um contexto no qual se determinou a obrigação internacional de atentar para a especial gravidade do crime de tráfico de drogas, atendendo à definição da ONU.
De acordo com os dados do DEPEN, de 2006 a 2014 houve um aumento de 339% de aprisionamento por tráfico de drogas no país, passando de 31 mil para 138 mil. São Paulo responde por cerca de 53%41 das prisões por drogas do país. Pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV/USP) sobre prisões por drogas em São Paulo apontou que a repressão volta-se a pessoas jovens, com idade entre 18 e 29 anos (75,6 %), negras (59%), com até o primeiro grau completo (60%).
A Lei de Drogas expressou a perspectiva de deixar de prender usuários de drogas, o que, porém, não trouxe os efeitos pretendidos, na medida em que o mesmo grupo social continuou sendo preso, mas o deixou de ser na qualidade de usuário, com penas menores, passando a cumprir penas longas (entre cinco e 15 anos) condenados como traficantes, contribuindo com o aumento da população prisional.
Resta-nos, diante do cenário apresentado, reafirmar os polos dentre os quais potencialmente opera o Sistema de Justiça: se de um lado temos o referencial da intensificação democrática, de outro, nos vemos premidos pelo risco sempre presente dos fascismos, como posiciona Boaventura de Sousa Santos (2016).
1.3.2. Fontes de dados
Quando nos perguntamos qual a contribuição do direito para a construção de uma sociedade mais justa, questionamos, em verdade, como o Sistema de Justiça tem mobilizado o direito para o atendimento (ou não) das expectativas de ampliação da cidadania em um contexto de fascismo social.
Diante da já explorada magnitude dos diferentes interesses envolvidos nas disputas políticas que orbitam a administração da justiça, o foco da preocupação volta-se à análise das possíveis formas de absorção, ou cooptação, das instituições para que elas sejam postas a serviço de seus próprios membros ou do Poder Executivo, em um contexto que explicita, ao fim e ao cabo, a hegemonia de mercado.
Bibliografia:
Cardoso, Luciana Zaffalon Leme. Uma espiral elitista de afirmação corporativa: blindagens e criminalizações a partir do imbricamento das disputas do Sistema de Justiça paulista com as disputas da política convencional. Luciana Zaffalon Leme Cardoso. 2017. 336 f. Tese (doutorado) – Escola de Administração de Empresas de São Paulo.