Resumo de Marighella – Menino Preso ao Pé da Mesa. É o capítulo 1 da biografia escrita por Mário Magalhães. Boa leitura!
Mais de cinquenta africanos ceavam na madrugada de 25 de janeiro de 1835 à espera do amanhecer. Espremiam-se no subsolo de um sobrado da ladeira da Praça, no coração de Salvador. Recapitularam o combinado: entre as cinco e as seis horas, como de costume, os escravos deixariam as senzalas e acorreriam às fontes da cidade em busca de água.
Naquele domingo, seria diferente: conterrâneos procedentes da mesma margem do Atlântico os conclamariam a pôr fim a tal estado de coisas. Não haveria mais senhores, pelo menos senhores brancos. Quase três séculos depois de os primeiros navios negreiros ancorarem, chegara a hora de o povo da África mandar.
Aqueles negros haviam acabado no cativeiro ao caírem prisioneiros em guerras entre reinos do Noroeste da África. Tinham sido trocados por fumo baiano e despachados pelos portos do golfo de Benin. Entre os cabeças do levante iminente, a maioria era de nagôs. Secundavam-nos os haussás, provenientes do Sudão, em um território que viria a fazer parte da Nigéria. Camadas expressivas de nagôs e haussás eram muçulmanas. Os africanos do islã se tornaram conhecidos como malês.
A agenda dos rebeldes avançava além dos quilombos. Em aliança com africanos de Pernambuco, formariam um reino. Eles não contavam, porém, com a descoberta da conspiração pelas autoridades. Em Água de Meninos, a REVOLTA DOS MALÊS sucumbiu na batalha derradeira. É possível que, vitoriosos, os negros introduzissem novas formas de escravidão. O certo é que estavam cansados da dominação branca e ambicionavam o poder.
Em nome da assombração dos sudaneses, a repressão espalhou o terror. Condenados à morte, quatro africanos seriam enforcados. Emitiram penas de prisão, galés e açoite. Puniram os libertos com a deportação. Em novembro de 1835, duzentos africanos foram depositados no patacho Maria Damiana. Do porto de Salvador, seguiram para Uidá, então Reino de Daomé, no futuro a República do Benin. Nunca mais a Bahia arderia com um levante malê.
Setenta e dois anos após o Maria Damiana zarpar, o paquete alemão Santos atracou no dia 4 de novembro de 1907. A temperatura talvez tenha iludido os dez trabalhadores italianos que desembarcaram no porto de Salvador. Dava a impressão de que o calor não os derreteria, ao contrário do que ouviam dizer de outras paragens brasileiras. Não era sombra o que buscava o ferreiro Augusto Marighella. Ele queria trabalho. Passara uma temporada em São Paulo ao lado da mãe, em companhia de quem deixara Ferrara, cidade renascentista da Emília-Romanha, na Itália setentrional, depois da morte do pai.
Os italianos eram velhos conhecidos da “baia di tutti i santi”, na letra do florentino Américo Vespúcio. A imigração italiana para lá seria inaugurada na década de 1830, a mesma do levante dos malês. Não seriam muitos. O censo de 1920 descobriu 1448 no estado.
Augusto parecia dar de ombros à ausência de uma comunità grandiosa como a paulistana. Tinha mais com o que se preocupar: inexistia época pior para procurar ocupação. Operário qualificado, não encontrou oportunidade na metalurgia. Topou uma vaga de motorista e mecânico dos caminhões do lixo. Logo se sentiu em casa.
O ferrarese não deixava de proclamar seu encanto com as composições de Paganini nem se cansava de, no banho, cantarolar cançonetas. Suas veleidades de cantor lhe foram preciosas quando, rodando de caminhão pelas ruas de pedra, esticou os olhos para uma negra alta e esbelta como uma haussá. Chamava-se Maria Rita dos Santos. Em 1908, completara vinte anos — nascera a 22 de maio de 1888, nove dias após a LEI ÁUREA.
Formaram um casal tão belo que nenhum dos oito filhos haveria de igualar a beleza dos pais. Mudaram-se para uma casa na rua da Fonte das Pedras. No futuro, seria erguido ali o maior estádio de futebol da Bahia, a Fonte Nova. Maria Rita estava em casa às três horas da madrugada da terça-feira 5 de dezembro de 1911, quando uma parteira a ajudou a pôr no mundo o primeiro filho, o mulato CARLOS MARIGHELLA.
Quando Carlinhos ensaiava as primeiras sílabas, o ferreiro Augusto já se transferira para uma rua do bairro, a Barão do Desterro. Com parcas economias, o italiano estabeleceu uma oficina mecânica no número 8. Na casa número 9, foi morar com a família que crescia. Até janeiro de 1929 seriam quatro os filhos homens (Agostinho e Humberto vieram depois de Carlos e antes do caçula Caetano) e quatro as mulheres (Anita, Julieta, Edwiges e Tereza).
Augusto era um tipo divertido e sedento por novidades. Introduziu em Salvador o martelo de borracha no conserto da lataria de automóveis, foi dos raros mecânicos que consertavam motores de navios e, na década de 1940, sagrou-se recordista na conversão para gasogênio de motores a gasolina. Inventou uma engenhoca para abastecer a caixa-d’água. Instalou uma roleta na frente da oficina e estimulava a criançada a passar por ela. Acionada pela rotação, uma bomba enchia a caixa. Fez escola: ex-aprendiz de Augusto, Osmar Macedo, já dono de sua própria oficina, conceberia com o amigo Dodô o protótipo do trio elétrico carnavalesco.
O inventor Augusto não militou no anarquismo como os imigrantes italianos que pararam São Paulo na greve geral de 1917. A LEI ADOLFO GORDO, de 1907, fabricada para expulsar estrangeiros associados à agitação social, nunca o ameaçou. Embora não vestisse a camisa rubro-negra dos anarquistas, compartilhava identidades com eles. Resmungava: “Militar é igual a macaco: só sabe imitar os outros”. Também parecia preferir a companhia do belzebu à de um sacerdote. Aos brados, botou um padre para correr de uma reunião comunitária. O guardião da igreja de São Francisco podia faltar, mas a família Marighella não perdia a primeira missa dominical. Enquanto Carlinhos era garoto, apenas um não aparecia: o seu Augusto da oficina. Em alguns anos, o filho mais velho não o deixaria só.
* * *
Se Augusto Marighella fazia qualquer coisa para se manter longe dos padres, Maria Rita não saberia viver sem eles. A mudança para a Baixa dos Sapateiros foi uma graça para ela. O que a animava na nova morada era a vizinhança da sua igreja mais querida, a de São Francisco. Da porta de casa ao pórtico da igreja caminhava, se muito, quinhentos metros. Era lá que comungava com os filhos, onde os batizou e mandou à primeira comunhão.
Maria Rita zelava pela formação da prole nos conformes do catecismo. Enquanto vivesse, nenhum filho deixaria de lhe tomar a bênção. De tanto acompanhar os sermões contra o ateísmo, Tereza manteria para sempre um pé atrás em relação aos comunistas. A mãe, os dois.
O passado de Maria Rita, nascida com a Abolição, era um mistério. Mais que discreta, ela dava mostras de que as lembranças a incomodavam. Quando as evocava, murmurava fragmentos.
Ela contava que sua mãe, Maria Especiosa dos Santos, fora escrava. Calava sobre o pai, Jesuíno dos Santos. A mãe e a irmã de Augusto se abalavam de São Paulo para visitá-los, porém nunca apareceu um parente da mãe baiana. Criança ou pouco mais do que isso, Maria Rita fora para a casa de franceses, na qual vivia ao se apaixonar por Augusto. Na intuição dos filhos, tinha sido “dada”, figura jurídica inexistente mas comum no país que foi dos últimos a extinguir formalmente o regime servil na América. Significava agregar-se, labutar em troca de moradia, comida e remuneração eventual. A agregada recebera lições de bons modos para servir, daí a fineza no trato. Entretanto, descuidaram de alfabetizá-la. Tropeçava ao ler e escrever, apesar de falar corretamente.
Maria Rita não era uma mulher triste, mas contida. Soluçava escondida, por causa de um episódio com Carlinhos. As portas das casas de Salvador viviam abertas, não havia por que fechá-las na Barão do Desterro. O problema é que o filho sumia para jogar futebol. A mãe temia que algo de ruim lhe sucedesse. Para não perdê-lo de vista, passou a amarrar um tornozelo do menino ao pé da mesa, com uma corda fina. Uma vizinha viu e exclamou:
“Dona Rita, não faça isso! Criança que é presa assim acaba presa de verdade.”
Maria Rita Marighella bambeou. Nunca mais amarrou o filho. Se um dia Carlinhos fosse preso, ela não se perdoaria.
Bibliografia:
MAGALHÃES, Mário. Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.