Resumo de Marighella – Capítulo 7 – “Atenção camaradas! Fala Moscou!”, presente na biografia escrita por Mário Magalhães. Boa leitura!
…
MARIGHELLA nem foi tão longe. Poucos minutos separavam Niterói, onde ele se escondeu nos meses seguintes ao alvará de soltura, da enseada de Botafogo. Marighella estabelecera contato com militantes niteroienses antes da prisão e com eles se arrumou depois dela.
Os jornais estampavam sua fotografia de maio de 1936, mas só um fisionomista de olho clínico reconheceria o foragido com o cabelo mais curto e a barba desbastada até restar um bigode.
Reconhecer o Partido Comunista Brasileiro (PCB) era tão difícil quanto identificar Marighella. No primeiro trimestre de 1937, a penúria era tanta que ao Secretariado Nacional, acantonado em Salvador, faltaram recursos para viajar a São Paulo. Para complicar, as prisões se sucediam, e os anticomunistas se excitavam.
No dia 30 de setembro, os jornais noticiaram uma conspiração da Internacional Comunista para a revanche de 1935. Era o “PLANO COHEN”. O documento com as orientações aos camaradas não se limitava a esmiuçar um levante político vindouro, mas aterrorizava as famílias com uma excitação “nitidamente sexual”. O papel tinha autor, um incerto Cohen — comunista e, traía o nome, judeu. O governo irradiou o teor pela Hora do Brasil, e o presidente obteve do Congresso autorização para o estado de guerra.
GETÚLIO VARGAS se fez ditador sem Legislativo, com o Judiciário manietado pelas cartas marcadas do Tribunal de Segurança Nacional, partidos banidos, interventores nos estados, polícia sem limites, greves proibidas e sindicatos atrelados ao Ministério do Trabalho. O pretexto para a farra, o “Plano Cohen”, era uma falsificação. Tratava-se de um estudo datilografado na sede da Ação Integralista Brasileira pelo chefe do seu serviço secreto, Olímpio Mourão Filho. O oficial do Exército atendia a uma encomenda para o boletim da entidade: devanear uma segunda intentona vermelha e prescrever o contra-ataque.
O PCB, contudo, abandonara a tática insurrecional, levada a cabo em 1935, e apoiava o candidato presidencial que se lançara como o preferido de Getúlio Vargas ao pleito de janeiro de 1938. Bancado pelo esquema político do Catete, o escritor paraibano José Américo de Almeida era o concorrente situacionista contra Plínio Salgado e Armando de Salles Oliveira, ex-governador de São Paulo. O Komintern incentivava a formação de frentes populares antifascistas. No Brasil, o PCB centrou fogo no integralismo e os setores mais reacionários do governo.
Dezessete dias após a libertação de Marighella, o Birô Político abriu uma reunião ampliada em São Paulo da qual ele não participou. O encontro expôs o maior racha que já abatera o partido. De um lado, o grupo do secretário-geral interino Lauro Reginaldo Rocha, Bangu, focava no isolamento dos camisas-verdes e personalidades com simpatias pelo Eixo Roma-Berlim. Para essa política de “união nacional contra o nazifascismo”, valia sustentar o candidato getulista das fileiras mais liberais. Do outro, combateu o maior Comitê Regional, o paulista, com mil militantes. Encabeçavam-no o jornalista Hermínio Sacchetta, Paulo, o alfaiate Heitor Ferreira Lima, Barreto, e o ex-líder estudantil Hílio de Lacerda Manna, Luiz. Eles queriam propor uma agenda democrática e de reformas sociais aos dois adversários de Plínio Salgado. O voto dependeria das respostas.
Os bangusistas venceram, o PCB aderiu sem condições a José Américo e se dilacerou numa guerra fratricida. Como os dois lados da contenda garantiam aplicar os mandamentos da Internacional, faltava a própria se manifestar. O silêncio de Moscou fez com que, na prática, coexistissem dois PCBs.
Do nada, Marighella empenhou-se em erguer um Comitê Regional em São Paulo. Era uma vida arriscada. As autoridades não estavam para brincadeira: um ano antes, quatro comunistas tinham sido mortos depois de imobilizados, numa tentativa de fuga do presídio Maria Zélia, em São Paulo. Os militantes próximos a Marighella eram fugitivos da Justiça e portavam identidades frias. Ele preocupou-se em não morar muito tempo no mesmo lugar. Temeroso de ser descoberto, habituou-se a gestos repentinos para surpreender eventuais perseguidores. Pegava bondes em movimento. Como senha, carregava cédulas rasgadas para cotejar com a metade em posse do interlocutor desconhecido.
O conflito com a facção de Sacchetta mudara de feição em 26 de agosto de 1938, quando a Internacional, enfim, tomara partido na crise do PCB. Como em todo o globo, desde o VII Congresso de 1935, o Komintern patrocinou a ala comunista à direita. Atacou Sacchetta no comunicado de rádio cuja versão impressa Marighella editou no Boletim Interno-Regional.
“Os fracionistas-trotskistas do Brasil, tendo à frente o renegado Erminio Sacheta (Paulo), Hilio Mana (Luiz) e Heitor Silva (Barreto), vendo fracassar seus planos divisionistas e provocadores, estão empregando novas manobras a fim de enganar os inexperientes. […] O trotskismo há muito que deixou de ser uma corrente política no meio da classe operária para se converter num bando de sabotadores, espiões, desagregadores e provocadores a serviço do fascismo”.
Apesar da grafia errada de alguns nomes, foi um golpe baixo: o PCB identificou publicamente, com os nomes legais, três (ex-) militantes de uma agremiação proscrita. Quando a Internacional disparou, forneceu prova ao Judiciário: Sacchetta foi detido em agosto de 1938.
Muitos militantes retornaram ao partido reconhecido pelo Komintern, e o Comitê Regional de Marighella se desenvolveu. Ele teve quatro obstáculos notáveis: a repressão da ditadura; a tática de união nacional pouco sedutora à base comunista; o isolamento decorrente da revolta de 1935 dissociada da classe operária; e a formação mais sólida de Sacchetta. Compensava o handicap [desvantagem] com disciplina e trabalho de formiguinha.
Para a polícia, não importava se os comunistas minavam Getúlio e o interventor Adhemar de Barros ou os queriam na frente anti-Eixo: eram todos vermelhos. Tinham abatido a organização de Sacchetta em 1938. Agora, corriam atrás de Marighella.
No dia 26, às sete e meia da noite, na avenida São João, Marighella se encontraria com Clóvis de Oliveira Netto. Quando deu por si, os policiais estavam se atirando sobre ele. Dessa vez não deu nem para reagir. Desde o início de 1939, o Comitê Regional estava ao alcance da repressão. Os inspetores da Delegacia de Ordem Política e Social vigiavam locais habituais de encontros de comunistas. Em pouco tempo, mais de dez inspetores espionavam os militantes que se enredavam na sua teia. Sem saber, um levava a outro, e o outro levava a mais um.
Caíram 22 militantes. O Comitê Regional foi desarticulado, e um ano e meio de trabalho se desfez. Marighella, 27 anos, foi levado para a delegacia. No cômodo alugado por Marighella, nas campanas e nos depoimentos dos presos na delegacia, esteve como escrivão ad hoc a alma da polícia política paulista: ninguém entendia de comunismo e comunistas como o onipresente investigador Luis Apollonio. Em perspicácia, era o Cecil Borer de São Paulo.
Em outubro, mandaram-no para onde ele fora torturado pela primeira vez, a Polícia Central no Rio de Janeiro, para aguardar o julgamento. Marighella dormiu três noites na rua da Relação e seguiu para a Casa de Detenção, também conhecida sua. Luis Apollonio fez questão de transportar pessoalmente para a capital os treze volumes do inquérito, com 1203 folhas.
Marighella foi sentenciado na tarde de 6 de março de 1940. Com base no decreto-lei 431, de 1938, o juiz apenou-o com cinco anos de reclusão. Somou a pena de 1937 e subtraiu o período cumprido: liberdade somente no segundo semestre de 1945. Marighella foi embarcado para Fernando de Noronha com outros condenados, no dia 1º de maio de 1940, a bordo do navio Almirante Alexandrino.
Bibliografia:
MAGALHÃES, Mário. Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.