Resumo de O Século Sertanejo, capítulo de Uma Breve História do Brasil de Mary Del Priore e Renato Venâncio. Boa leitura!
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Diferentemente dos intrusivos paulistas, os criadores de gado nordestinos adentraram não nas matas e alagados, mas nas vastas extensões de terra distantes do fértil litoral. Em 1549, com a instalação do governo-geral, começou a lenta expansão da pecuária no Nordeste.
Uma das figuras emblemáticas dessa forma de conquista do sertão foi o português Garcia d’Ávila, que, tendo recebido umas terras de pasto nos campos de Itapoã das mãos do governador Tomé de Souza, logo as estendeu até a enseada de Tatuapara. Em poucos anos, tornou-se um dos mais ricos homens da Bahia. Devagarzinho, manadas baianas, imensas e silenciosas, percorreram léguas e léguas do território brasileiro, espalhando-se entre o que hoje é o Piauí e as nascentes do rio São Francisco, em Minas Gerais.
O sertão, significando na época as terras apartadas do litoral, era o palco dessa nova ocupação. A vida ali não era fácil. De agosto a dezembro, a falta d’água era tanta que muitas pessoas quase não tinham o que beber. Junto com a seca vinham as crises de abastecimento. Quase nada florescia, nem crescia. Nas áreas menos atingidas pela seca, o gado dominava a terra.
A cidade de Oeiras – primeira capital do Piauí – originou-se de uma única fazenda, denominada Cabrobó, fundada por sesmeiros dos descendentes de Garcia d’Ávila. O antigo núcleo da fazenda, seus casarões, currais e casas de moradores e agregados geraram a vila de Moxa, nome do riacho que banha a região e que serviu de primeira designação para a capital piauiense. Casas de barro cobertas de palha, currais de pedra ou madeira, pequenas roças de mandioca, feijão e milho funcionavam como âncora para o gado que se criava solto. Pastagens sem limites funcionavam como campos de engorda onde o vaqueiro só pisava para buscar bezerros novos e fazer nova choupana.
O tamanho dos currais variava de acordo com o rebanho e o número anual de bezerros, chegando até a mil metros quadrados. Junto aos vaqueiros livres trabalhavam escravos, homens e mulheres. Segundo os viajantes Spix e Martius, de passagem pelo Piauí, em 1820, para cada mil cabeças bastavam dez escravos. Casamentos ou uniões consensuais entre homens e mulheres escravos garantiam relativa estabilidade familiar nas fazendas de gado. Das crianças nascidas, a grande maioria era empurrada para o trabalho no campo desde cedo, e muitos meninos de sete anos aparecem nos documentos como pequenos vaqueiros. Outra característica da área de pecuária era o número elevado de escravos alforriados, sobretudo no século XIX.
O gado tinha várias funções: seu couro servia para o ensacamento da produção de fumo e embalagem de alimentos nas viagens ultramarinas, a fabricação de malas, bolsas, laços e redes. No engenho, os animais eram comumente usados para a lavragem das canas e para virar as pesadas rodas. O gado alimentava vilas e cidades em Pernambuco e Bahia, mas também, via rio São Francisco, as populações que, no final do século XVII, se instalaram em Minas Gerais. Fortunas imensas se constituíram na pecuária. Mas o pequeno comércio de gado mantinha uma grande população de camaradas, vaqueiros, agregados, livres e forros ocupada e acumulando bens.
Tal como no Nordeste, a criação de gado, cem anos após o início da colonização, conquistou o Sul da Colônia. Nessa área, os jesuítas foram os principais responsáveis pela disseminação das reses. E o fizeram para alimentar os aldeamentos de catequese. Num sistema de trocas comerciais mantido com os paulistas, também permutavam reses por algodão, para vestir os índios das reduções.
Em várias áreas o rebanho se multiplicava. A lança, o laço e a boleadeira, instrumentos de adestramento e captura dos animais, eram manejados pelos grupos de solitários campeadores, conhecidos como bombeiros. O estancieiro, diferentemente do preador ou do traficante, era homem plantado em terra própria. Os pilhadores de cavalos e matadores de bois, por suas arriadas – roubo de gado –, eram o tormento das autoridades. Por outro lado, foi graças a eles que a planície platina foi varrida de espanhóis e índios. Em multidão surda e difusa, se espalhavam pelas fronteiras, empurrando-as. Estabelecidos em falsas querências com o fim de revendê-las aos colonizadores, chegavam a apossar-se de pedaços das estâncias reais. Uma cultura singular nascia na Cisplatina: o campeador gaúcho, o guasca, que se caracteriza por seu amor ao pago e à querência, o hábito da carneagem – esfolar a rês –, do churrasco, do mogango com leite, do sombreiro de feltro, das botas de couro com vistosas chilenas de prata, do agudo punhal de cabo floreado.
O contínuo movimento de comércio com os paulistas, iniciado no começo do século XVIII, tornava possível essa civilização gaúcha. Entre 1724 e 1726, a importação paulista anual foi de mil muares, dobrando até 1750. Daí até 1780, passou a 5 mil e, de 1780 a 1800, dobrou mais uma vez. De 1826 a 1845, estava acima de 30 mil animais. Se os muares equivaliam a 49,8% dos animais drenados para São Paulo, os bois correspondiam a 28,2% das importações e os cavalos a 22%. Na outra ponta desse lucrativo comércio encontramos os tropeiros.
Basicamente, os tropeiros eram homens que viviam de comprar e vender diversos tipos de produtos. Enfocaremos, aqui, o papel dos tropeiros paulistas, responsáveis, junto com tropeiros mineiros, pelo enorme desenvolvimento da sociedade gaúcha. Denominavam-se paulistas os nativos da capitania, mas também portugueses e espanhóis que ali viviam. Os paulistas, depois que lhes tiraram os terrenos auríferos, se voltaram em grande parte para o negócio e a criação de gados. Dedicaram-se também a comprar gados na capitania de São Pedro ou em Curitiba e, conduzindo-os por terra a essa capitania, vão vendê-las às outras, pois os gados baianos que desciam o São Francisco não davam mais conta de alimentar as necessidades das populações nas áreas mineradoras.
O prodigioso desenvolvimento das correntes de circulação humana, durante o século XVIII, ensejava meios rápidos e abundantes de comunicação. Esses meios seriam cavalos e mulas. As mulas vindas do Sul eram comercializadas, grosso modo, na feira de Sorocaba. Uma escola de peões evoluiu junto com as feiras. Uma vez vendidas, as mulas serviam para tudo. Carregavam gente, pedras ou produtos de subsistência.
A importância econômica e social desse século sertanejo não deixa dúvidas. Sertanejos, guascas e tropeiros estiveram por trás do funcionamento de engenhos de açúcar, do desenvolvimento das atividades mineiras e do abastecimento do interior do Brasil. A circulação interna da Colônia, assim como o transporte de produtos e bens só podia ser feito em lombo de mula. O abastecimento de Minas e dos grupos militares estacionados no Sul dependia da carne bovina. A fazenda de gado do Nordeste criou uma massa de pequenos e médios proprietários. O mesmo se deu no Sul e no Sudeste. Aí, particularmente, essa gente alargou nossas fronteiras. Funcionando como uma correia transmissora de negócios, valores e informações, tropas e tropeiros ligavam as pessoas nos pontos mais diversos da Colônia. No século XVIII, as tropas de mulas foram responsáveis pela profunda animação que tomou conta do pequeno e do grande comércio, assim como da sociedade que começava a nascer nos sertões. A dívida do sertão em relação aos tropeiros estendeu-se até a chegada do trem na segunda metade do século XIX.
Bibliografia:
DEL PRIORE, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve História do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.