Resumo de Sem Fé, Sem Lei, Sem Rei, capítulo de Uma Breve História do Brasil de Mary Del Priore e Renato Venâncio. Boa leitura!
…
Da caravela, o capitão-mor e seu escrivão, Caminha, observavam, na praia, homens que gesticulavam. “Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse as vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas.” Era uma gente nova e desconhecida, que deitou no chão os arcos e as flechas impregnadas de venenoso sumo de mandioca, quando os portugueses se aproximaram.
Se, por um lado, esses contatos pressupunham uma aproximação pacífica, por outro, houve um distanciamento. Os portugueses ignoravam a identidade dos povos indígenas. Contrariamente ao que pensavam os recém-chegados, a história de tais tribos começava antes da chegada das caravelas portuguesas. Vestígios materiais indicam a existência de uma cultura indígena instalada milhares de anos antes da chegada de Cabral.
Esses primeiros ancestrais coabitavam com tatus gigantes, mastodontes e outras espécies da megafauna. A presença de instrumentos como peças de pedra, funcionando como batedores-trituradores, mós e pilões, pontas de arpão e anzóis evidenciam não apenas uma simples preocupação fisiológica, mas uma cultura em torno do alimento.
Esculturas de pedra e osso constituem um catálogo de suas criações artísticas. Em Roraima, no interior das cavernas, usavam-se até andaimes para o acabamento das pinturas. No conjunto rupestre do Lajedo de Soledade, no Rio Grande do Norte, imagens comprovam a preparação das tintas que evitava o escorrimento das cores.
A “arte de morrer” também era uma de suas preocupações: as formas de enterro, com os corpos embrulhados, sentados ou deitados vestindo capas, adornados, indicam a presença de práticas religiosas em torno da memória dos ancestrais.
Os portugueses encontraram descendentes desses grupos. Tais sociedades organizavam-se em habitações de quatro a sete malocas, dispostas em volta de um terreiro, utilizado para realização de cerimônias religiosas, festas sagradas, rituais de antropofagia. A poligamia era difundida, mas apenas entre os grandes caciques.
Os cuidados com o sexo feminino eram permanentes. Mulheres andavam atrás de seus companheiros para que estes as protegessem do ataque de um animal ou de um inimigo. Tinham liberdade sexual antes do casamento, sem que isto lhes manchasse a honra. Já o adultério feminino permitia o homem a matar a adúltera ou a entregá-la aos rapazes da aldeia. A criança nascida de uma relação extraconjugal era enterrada viva.
No momento do parto, maridos ajudavam suas mulheres, comprimindo-lhes o ventre. O cordão umbilical do filho homem era cortado com os dentes pelo pai, enquanto as meninas recebiam da mãe os primeiros cuidados. Durante o resguardo, os pais não trabalhavam, alimentando-se exclusivamente de farinha de raiz (ouic) e água. Tais hábitos – a couvade – simbolizavam a importância do papel paterno na geração de uma criança. Durante um ano e meio, tempo em que durava o aleitamento, mães e filhos não se desgrudavam. Envoltas num pano, typoia, as pequenas criaturas eram carregadas até durante o trabalho nas roças.
O trabalho obedecia a prescrições baseadas no sexo e na idade. Mulheres semeavam, plantavam e colhiam produtos agrícolas, frutas e mariscos, fabricavam farinhas e óleo de palmeira, preparavam as raízes para a produção do cauim, fiavam algodão e teciam redes, cuidavam dos animais domésticos, e do corpo dos parentes, catando piolhos, depilando-os, etc. Os homens derrubavam a mata e preparavam a terra para a horticultura, caçavam e pescavam, construíam malocas, fabricavam canoas e armas, cortavam lenha e protegiam mulheres e crianças.
Entes sobrenaturais, temidos pelos indígenas, habitavam as matas fechadas. Kuru’pir (Curupira) comandava as árvores e os animais. A caça de porte era o domínio de Anhangá, enquanto Caapora protegia a caça miúda. Mboitatá era o senhor das relvas e arbustos. Nas matas, onde houvesse arvoredo denso, os indígenas marcavam as árvores a golpes de machado ou quebrando galhos, indicando um caminho: era o ibapaá ou caapeno. Nos rios, os indígenas memorizavam meandros e afluentes em representações gráficas cuja exatidão dava inveja aos cartógrafos europeus. A necessidade de enfrentar a natureza hostil incentivava uma série de habilidades: rastreavam a caça cobiçada no escuro, localizavam, entre centenas de troncos, colmeias cheias de cera e mel. Fabricavam um número variado de artefatos fáceis de transportar e capazes de tornar seu cotidiano mais fácil, como sandálias de pedaços de caraguatá e canudos de taquara para beber nos olhos d’água subterrâneos. Tais grupos indígenas também detinham um enorme conhecimento de folhas e frutos curativos que, misturados a urina e fumo, debelavam uma série de mazelas ou ao menos faziam com que se imaginassem curados.
Inicialmente, os portugueses não afetaram a vida dos indígenas. Enfurnados em feitorias dispersas ao longo do litoral, dependiam dos nativos para sua alimentação e proteção; o escambo de produtos dava regularidade aos entendimentos. Mas, a partir de 1534, chega ao fim a fase em que os brancos se mantiveram dependentes dos nativos. O estilo de vida e as instituições sociais europeias, como o regime de donatarias ou de capitanias hereditárias, entranhavam-se na nova terra.
Ao substituir o escambo pela agricultura, os portugueses começavam a virar o jogo. Nesse momento multiplicam-se as queixas em relação aos índios. O fato de não possuírem nem fé, nem lei, nem rei transformou-se em justificativa para desprezá-los e vê-los como o grande obstáculo para a ocupação da terra e a força de trabalho necessária para colonizá-la. Submetê-los tornou-se a grande preocupação para os doze donatários das quinze capitanias distribuídas por d. João III, rei de Portugal, em 1534.
Esses donatários eram funcionários da Coroa, veteranos ou negociantes, que tinham feito fortuna no Oriente. Dentre seus direitos e deveres, constava não lesar a população, aceitar impostos em espécie, pagar à Coroa o quinto sobre pedras preciosas encontradas e pertencer à religião católica. Também vinham degredados, alguns condenados pela justiça secular, outros pela Inquisição, instituída em 1536. Capitais hebraicos azeitavam os negócios de cristãos-novos – nome dado aos judeus conversos à força em Portugal – financiando a implantação da cultura açucareira.
A economia colonial teve início com o cultivo de cana-de-açúcar, construção de engenhos e uso de mão de obra escrava. Começava, assim, a caça ao indígena, e com ela o tráfico de negros da terra – termo utilizado para diferenciá-los dos negros africanos –, a fim de abastecer os núcleos de colonização.
Lutas seguiam-se. Em meados do século XVI, a Confederação dos Tamoios, primeiro movimento de resistência a reunir vários povos indígenas, teve o apoio de huguenotes franceses. O conflito, conhecido como Guerra de Paraguaçu (1558-59), destruiu 130 aldeias. Por essa época, multiplicavam-se as revoltas do gentio, com assaltos a núcleos de colonização e engenhos, mortes de brancos e de escravos negros. Na Bahia, um fenômeno religioso tomava conta dos tupis: era a santidade. Nela, em meio a danças e cânticos, os índios afirmavam sua vontade de achar uma terra onde não houvesse portugueses, lutas e massacres, fome e doença: a “terra sem mal”.
Encerra-se o primeiro século da presença lusa em terra brasileira, com a colonização de parte do litoral e de pequenas áreas da terra adentro. Notícias fabulosas sobre minas de ouro e pedras preciosas ensejaram expedições rumo ao sertão. A criação de gado, trazidos de Cabo Verde, por sua vez, estimula ainda mais a ocupação interiorana. Nesses processos de expansão, novas guerras e novos massacres contra as populações indígenas são registrados.
Bibliografia:
DEL PRIORE, Mary e VENANCIO, Renato. Uma Breve Historia do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.