Resumo de Ilegalidade e Delinquência, capítulo de Vigiar e Punir de Michel Foucault. Boa leitura!
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A passagem dos suplícios a penas de prisões enterradas em arquiteturas maciças e guardadas pelo segredo das repartições é a passagem de uma arte de punir a outra. O que substituiu o suplício não foi um encarceramento maciço, foi um dispositivo disciplinar cuidadosamente articulado.
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A prisão foi denunciada como o grande fracasso da justiça penal. A crítica da prisão e de seus métodos aparece muito cedo, nos anos de 1820-1845. Não devemos, contudo, conceber a prisão, seu “fracasso” e sua reforma como três tempos sucessivos. Devemos antes pensar num sistema que se sobrepôs à privação jurídica da liberdade que compreende: o “suplemento” disciplinar da prisão — elemento de sobrepoder; a produção de uma técnica, de uma “racionalidade” penitenciária — elemento do saber conexo; a recondução de uma criminalidade que a prisão devia destruir — elemento de eficácia inversa; enfim a repetição de uma reforma que é isomorfa ao funcionamento disciplinar da prisão — elemento do desdobramento utópico. É este conjunto complexo que constitui o “sistema carcerário” e não só a instituição da prisão.
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Talvez devamos nos perguntar para que serve o fracasso da prisão. Deveríamos então supor que a prisão e os castigos não se destinam a suprimir as infrações; mas a organizar a transgressão das leis numa tática geral das sujeições. O “fracasso” da prisão pode ser compreendido a partir daí.
O esquema geral da reforma penal foi aplicado no fim do século XVIII na luta contra as ilegalidades. Na passagem do século XVIII ao XIX, e contra os novos códigos, surge o perigo de um novo ilegalismo popular. Ou mais exatamente, talvez, as ilegalidades populares se desenvolvem então segundo dimensões que trazem consigo todos os movimentos que, desde os anos 1780 até às revoluções de 1848, entrecruzam os conflitos sociais, as lutas contra os regimes políticos, a resistência ao movimento de industrialização, os efeitos das crises econômicas. Foi sem dúvida contra o novo regime de propriedade da terra – instaurado pela burguesia, que aproveitou a Revolução – que se desenvolveu a ilegalidade camponesa; foi contra o novo regime de exploração legal do trabalho que se desenvolveram as ilegalidades operárias no começo do século XIX. Uma série de ilegalidades surge em lutas onde se defrontam ao mesmo tempo a lei e a classe que a impôs.
Esses processos, em sua forma esboçada e apesar de sua dispersão, foram suficientemente marcados para servir de suporte ao grande medo de uma plebe que se acredita toda em conjunto criminosa e sediciosa, ao mito da classe bárbara, imoral e fora da lei. São processos que encontramos atrás de toda uma série de afirmações bem estranhas à teoria penal do século XVIII: que o crime é coisa quase exclusiva de uma certa classe social; que nos tribunais não é a sociedade inteira que julga um de seus membros, mas uma categoria social encarregada da ordem sanciona outra fadada à desordem.
Se tal é a situação, a prisão, ao aparentemente “fracassar”, não erra seu objetivo; ao contrário, ela o atinge na medida em que suscita uma forma particular de ilegalidade. Essa forma é a delinquência propriamente dita. O sucesso é tal que, depois de um século e meio de “fracasso”, a prisão continua a existir, produzindo os mesmos efeitos e que se têm os maiores escrúpulos em derrubá-la.
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A penalidade de detenção fabricaria — daí sem dúvida sua longevidade — uma ilegalidade fechada, separada e útil.
A instituição de uma delinquência que constitua como que uma ilegalidade fechada apresenta vantagens. É possível, em primeiro lugar, controlá-la (localizando os indivíduos, infiltrando-se no grupo, organizando a delação mútua). É possível orientar essa delinquência para as formas de ilegalidade que são menos perigosas: mantidos pela pressão dos controles nos limites da sociedade, reduzidos a precárias condições de existência, os delinquentes se atiram fatalmente a uma criminalidade localizada, sem poder de atração, politicamente sem perigo e economicamente sem consequência. Ao se diferenciar das outras ilegalidades populares, a delinquência pesa sobre elas.
Mas a delinquência é também capaz de utilização direta. A delinquência é um agente para a ilegalidade dos grupos dominantes. Os tráficos de armas, os de álcool nos países de lei seca, ou mais recentemente os de droga, mostrariam esse funcionamento da “delinquência útil”; a existência de uma proibição legal cria em torno dela um campo de práticas ilegais, sobre o qual se chega a exercer controle e a tirar um lucro ilícito por meio de elementos ilegais, mas tornados manejáveis por sua organização em delinquência. Esta é um instrumento para gerir e explorar as ilegalidades.
É também um instrumento para a ilegalidade que o próprio exercício do poder atrai a si. A utilização política dos delinquentes – sob a forma de espias, denunciantes, provocadores – era fato sabido bem antes do século XIX. Mas depois da Revolução essa prática tomou dimensões completamente diversas: a infiltração nos partidos políticos e associações operárias, o recrutamento de homens de ação contra os grevistas e amotinados, a organização de uma subpolítica – que trabalha em relação direta com a polícia legal – todo um funcionamento extralegal do poder foi em parte realizado pela massa de manobra constituída pelos delinquentes: polícia clandestina e exército de reserva do poder. Pode-se dizer que a delinquência representa um desvio de ilegalidade para os circuitos de lucro e de poder ilícitos da classe dominante.
A organização de uma ilegalidade isolada e fechada na delinquência não teria sido possível sem o desenvolvimento dos controles policiais. A delinquência, com os agentes ocultos que proporciona, mas também com a quadriculagem geral que autoriza, constitui em meio de vigilância perpétua da população: um aparelho que permite controlar, através dos próprios delinquentes, todo o campo social. A delinquência funciona como um observatório político.
Mas essa vigilância só pôde funcionar conjugada com a prisão. Porque esta facilita o controle dos indivíduos quando são libertados, porque coloca os infratores em contato uns com os outros, ela precipita a organização de um meio delinquente fechado em si mesmo, mas que é fácil de controlar. De maneira que se deveria falar de um conjunto cujos três termos (polícia-prisão-delinquência) se apoiam uns sobre os outros e formam um circuito que nunca é interrompido. A vigilância policial fornece à prisão os infratores que esta transforma em delinquentes, alvo e auxiliares dos controles policiais que regularmente mandam alguns deles de volta à prisão.
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Erguer a barreira que deveria separar os delinquentes de todas as camadas populares de que saíam demorou muito tempo e exigiu obstinação. Foram sistematicamente confundidos os delitos de direito comum e aquelas infrações à pesada legislação sobre as carteiras de reservista, as greves, os conluios, as associações para as quais os operários pediam o reconhecimento de um estatuto político. Mostrou-se nos veredictos muitas vezes maior severidade contra os operários que contra os ladrões. Em resumo, toda uma tática de confusão que tinha como finalidade um estado de conflito permanente.
Mas essa criminalidade de necessidade ou de repressão mascara outra criminalidade que é às vezes causa dela, e sempre a amplificação. É a delinquência de cima, fonte de miséria e princípio de revolta para os pobres. Essa delinquência própria à riqueza é tolerada pelas leis, e, quando lhe acontece cair em seus domínios, ela está segura da indulgência dos tribunais e da discrição da imprensa. Não há então natureza criminosa, mas jogos de força que, segundo a classe a que pertencem os indivíduos, os conduzirão ao poder ou à prisão.
Pode então acontecer que o crime constitua um instrumento político que seja tão importante para a libertação de nossa sociedade quanto foi para a emancipação dos negros. O veneno, o incêndio e às vezes até a revolta atestam as ardentes misérias da condição social. Daí uma utilização do noticiário policial que não tem simplesmente como objetivo fazer voltar contra o adversário a acusação de imoralidade, mas fazer aparecer o jogo das forças que se opõem reciprocamente.
Bibliografia:
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 38 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.