Esse é o resumo de A Punição Generalizada, capítulo 3 de Vigiar e Punir de Michael Foucault. Bons estudos!
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O protesto contra os suplícios é encontrado em toda parte na segunda metade do século XVIII: entre os filósofos e teóricos do direito; entre juristas, magistrados, parlamentares e entre os legisladores das assembleias.
O suplício tornou-se perigoso pelo apoio que nele encontram, uma contra a outra, a violência do rei e a do povo. A tirania, segundo os reformadores, se opõe à revolta; elas se reclamam reciprocamente. Duplo perigo. É preciso que a justiça criminal puna em vez de se vingar.
Nessa época das Luzes, o homem marca o ponto de parada imposto à vingança do soberano. O “homem” que os reformadores puseram em destaque contra o despotismo do cadafalso é também um homem-medida do poder.
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Temos que recolocar essa reforma no duplo movimento pelo qual, durante o século XVIII, os crimes parecem perder violência, enquanto as punições reduzem em parte sua intensidade, mas à custa de múltiplas intervenções.
A disfunção do poder provém do “superpoder” monárquico que identifica o direito de punir com o poder pessoal do soberano. É porque o rei se arroga o direito de vender ofícios de justiça que lhe “pertencem” que ele tem diante de si magistrados, proprietários de seus cargos, não só indóceis, mas ignorantes, interesseiros. É porque cria constantemente novos ofícios que ele multiplica os conflitos de poder e de atribuição. É porque exerce um poder muito rigoroso sobre sua “gente” e lhes confere um poder quase discricionário que ele intensifica os conflitos na magistratura. É por ter posto a justiça em concorrência com um excesso de procedimentos de urgência (jurisdições dos prebostes ou dos chefes de polícia) ou com medidas administrativas, que ele paralisa a justiça regular, que a torna às vezes indulgente e incerta, mas às vezes precipitada e severa.
A reforma do direito criminal deve ser lida como uma estratégia para o remanejamento do poder de punir, de acordo com modalidades que aumentem os efeitos diminuindo o custo econômico (ou seja, dissociando-o do sistema da propriedade, das compras e vendas, da venalidade tanto dos ofícios quanto das próprias decisões) e seu custo político (dissociando-o do arbitrário do poder monárquico).
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A conjuntura que viu nascer a reforma não é, portanto, a de uma nova sensibilidade; mas a de outra política em relação às ilegalidades.
No Antigo Regime, os diferentes estratos sociais tinham cada um sua margem de ilegalidade tolerada. Em suas regiões inferiores, encontrava-se com a criminalidade, de que era difícil distingui-la juridicamente, senão moralmente: da ilegalidade fiscal à ilegalidade aduaneira, ao contrabando, ao saque, à luta armada contra os agentes do fisco depois contra os próprios soldados, à revolta enfim, havia uma continuidade, onde as fronteiras eram difíceis de marcar. Entre essa ilegalidade de baixo e as das outras castas sociais, não havia exatamente convergência, nem oposição fundamental.
Mas na segunda metade do século XVIII o processo tende a se inverter. Com o aumento geral da riqueza e com o grande crescimento demográfico, o alvo principal da ilegalidade popular tende a ser não mais em primeira linha os direitos, mas os bens. Se uma boa parte da burguesia aceitou, sem muitos problemas, a ilegalidade dos direitos, ela a suportava mal quando se tratava do que considerava seus direitos de propriedade.
É portanto necessário que as infrações sejam bem definidas e punidas com segurança, que nessa massa de irregularidades seja determinado o que é infração intolerável, e que lhe seja infligido um castigo de que ela não poderá escapar. A economia das ilegalidades se reestruturou com o desenvolvimento da sociedade capitalista. A ilegalidade dos bens foi separada da ilegalidade dos direitos. E essa grande redistribuição das ilegalidades se traduzirá por uma especialização dos circuitos judiciários; para as ilegalidades de bens – para o roubo – os tribunais ordinários e os castigos; para as ilegalidades de direitos – fraudes, evasões fiscais, operações comerciais irregulares — jurisdições especiais com transações, acomodações, multas atenuadas, etc. A reforma penal nasceu no ponto de junção entre a luta contra o superpoder do soberano e a luta contra o infrapoder das ilegalidades conquistadas e toleradas. A humanidade das penas é a regra que se dá a um regime de punições que deve fixar limites a um e a outro.
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Tais são as razões de ser essenciais da reforma penal no século XVIII: constituir uma nova economia e uma nova tecnologia do poder de punir.
Se deixarmos de lado o dano propriamente material, o prejuízo que um crime traz ao corpo social é a desordem que introduz nele: o escândalo que suscita, o exemplo que dá, a incitação a recomeçar se não é punido, a possibilidade de generalização que traz consigo. Para ser útil, o castigo deve ter como objetivo as consequências do crime, entendidas como a série de desordens que este é capaz de abrir.
Não era preciso esperar a reforma do século XVIII para definir essa função exemplar do castigo. A diferença é que a prevenção que se esperava como um efeito do castigo tende a tornar-se agora o princípio de sua economia, e a medida de suas justas proporções. É preciso punir exatamente o suficiente para impedir. Numa penalidade calculada pelos seus próprios efeitos, o exemplo deve-se referir ao crime, mas da maneira mais discreta possível; indicar a intervenção do poder mas com a máxima economia, e no caso ideal impedir qualquer reaparecimento posterior de um e outro. Através dessa técnica, os reformadores pensam dar ao poder de punir um instrumento econômico, eficaz, generalizável por todo o corpo social, que possa codificar todos os comportamentos e consequentemente reduzir todo o domínio difuso das ilegalidades.
Vemos aí ao mesmo tempo a necessidade de uma classificação paralela dos crimes e dos castigos e a necessidade de uma individualização das penas, em conformidade com as características singulares de cada criminoso. O que começa a se esboçar agora é uma modulação que se refere ao próprio infrator, à sua natureza, a seu modo de vida e de pensar, a seu passado, à “qualidade” e não mais à intenção de sua vontade.
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No ponto de partida, podemos então colocar o projeto político de classificar exatamente as ilegalidades, de generalizar a função punitiva, e de delimitar, para controlá-lo, o poder de punir. Ora, daí se definem duas linhas de objetivação do crime e do criminoso. De um lado, o criminoso designado como inimigo de todos. De outro lado, a necessidade de medir os efeitos do poder punitivo prescreve táticas de intervenção sobre todos os criminosos, atuais ou eventuais. Nos dois casos, vemos que a relação de poder que fundamenta o exercício da punição começa a ser acompanhada por uma relação de objeto na qual se encontram incluídos não só o crime como fato a estabelecer segundo normas comuns, mas o criminoso como indivíduo a conhecer segundo critérios específicos.
Essa semiotécnica das punições é que será substituída por uma nova anatomia política em que o corpo novamente, mas numa forma inédita, será o personagem principal.
Bibliografia:
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 38 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.