Resumo de A Mitigação das Penas, capítulo de Vigiar e Punir de Michel Foucault. Boa leitura!
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Encontrar para um crime o castigo que convém é encontrar a desvantagem cuja ideia seja tal que torne definitivamente sem atração a ideia de um delito. Importa constituir pares de representação de valores opostos, estabelecer um jogo de sinais-obstáculos que possam submeter o movimento das forças a uma relação de poder. Esses sinais-obstáculos devem constituir o novo arsenal das penas. Mas, para funcionar, têm que obedecer a várias condições:
1) Ser tão pouco arbitrários quanto possível. A punição ideal será transparente ao crime que sanciona.
2) Esse jogo de sinais deve corresponder à mecânica das forças: diminuir o desejo que torna o crime atraente, aumentar o interesse que torna a pena temível.
3) Uma pena que não tivesse termo seria contraditória: todas as restrições por ela impostas ao condenado e que, voltando a ser virtuoso, ele nunca poderia aproveitar, não passariam de suplícios.
4) Que esses sinais-obstáculos circulem então rápida e largamente; que formem o discurso que cada um faz a todo mundo e com o qual todos se proíbem o crime.
5) Daí resulta uma sábia economia da publicidade. No suplício corporal, o terror era o suporte do exemplo: imagens que devem ser gravadas na memória dos espectadores, como a marca na face ou no ombro do condenado. O suporte do exemplo, agora, é a lição, a encenação e a exposição da moralidade pública. Assim que o crime for cometido, virá a punição, traduzindo em ações o discurso da lei e mostrando que o Código, que liga as ideias, liga também as realidades.
6) Grave preocupação para os fazedores de leis no século XVIII: como apagar a glória duvidosa dos criminosos? Se a cerimônia de luto se desenrolar como deve, o crime só poderá aparecer então como uma desgraça e o malfeitor como um inimigo a quem se reensina a vida social.
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É banida a ideia de uma pena uniforme, modulada unicamente pela gravidade da falta. Sem dúvida, a prisão é prevista, mas entre outras penas. A ideia de uma reclusão penal é explicitamente criticada por muitos reformadores: é incapaz de responder à especificidade dos crimes; é desprovida de efeito sobre o público; é cara, mantém os condenados na ociosidade, multiplica-lhes os vícios.
Ora, eis o problema: depois de bem pouco tempo, a detenção se tornou a forma essencial de castigo. Isso porque a prisão tinha apenas uma posição restrita e marginal no sistema das penas. Como pôde a detenção, em tão pouco tempo, tornar-se uma das formas mais gerais dos castigos legais?
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A explicação mais frequente é a formação durante a época clássica de alguns grandes modelos de encarceramento punitivo. Seu prestígio teria permitido superar o duplo obstáculo constituído pelas regras seculares do direito e o funcionamento despótico da prisão.
O mais antigo desses modelos é o Rasphuis de Amsterdam, aberto em 1596. Seu funcionamento obedecia a três grandes princípios: a duração das penas podia ser determinada pela própria administração, de acordo com o comportamento do prisioneiro. O trabalho era obrigatório, feito em comum; e pelo trabalho feito, os prisioneiros recebiam um salário. Enfim um horário estrito, um sistema de proibições e de obrigações, uma vigilância contínua, todo um jogo de meios para “atrair para o bem” e “desviar do mal”, enquadrava os detentos no dia-a-dia.
A cadeia de Gand organizou o trabalho penal em torno principalmente de imperativos econômicos. A razão dada é que a ociosidade é a causa geral da maior parte dos crimes. O modelo inglês acrescenta, como condição essencial para a correção, o isolamento; o condenado, escapando às más influências, pode redescobrir no fundo de sua consciência a voz do bem. A cela torna-se o instrumento através do qual se podem reconstituir ao mesmo tempo o homo oeconomicus e a consciência religiosa.
Enfim, o modelo de Filadélfia. Trabalho obrigatório em oficinas, custeio das despesas da prisão com esse trabalho, mas também retribuição individual dos prisioneiros para assegurar sua reinserção moral e material no mundo estrito da economia. Cada instante do dia é destinado a alguma coisa, prescreve-se um tipo de atividade e implica obrigações e proibições. Como em Gand, a duração do encarceramento pode variar com o comportamento do detento.
Walnut Street comporta o princípio da não-publicidade da pena; a certeza de que, atrás dos muros, o detento cumpre sua pena deve ser suficiente para constituir um exemplo: terminados aqueles espetáculos de rua criados pela lei de 1786, quando impôs a certos condenados obras públicas a executar nas cidades ou estradas.
O mais importante sem dúvida é que esse controle e essa transformação do comportamento são acompanhados da formação de um saber dos indivíduos. Ao mesmo tempo que o próprio condenado, a administração de Walnut Street recebe um relatório sobre seu crime, as circunstâncias em que foi cometido, um resumo de interrogatório do culpado, notas sobre a maneira como ele se conduziu antes e depois da sentença. E durante todo o tempo da detenção seu comportamento será anotado dia por dia, e os inspetores que visitam a prisão toda semana, deverão tomar conhecimento da conduta de cada condenado e designar aqueles para os quais será pedida a graça. Organiza-se todo um saber individualizante que toma como campo de referência a virtualidade de perigos contida num indivíduo e que se manifesta no comportamento observado cotidianamente. A prisão funciona aí como um aparelho de saber.
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Entre este aparelho punitivo proposto pelos modelos flamengo, inglês e americano e todos os castigos imaginados pelos reformadores, podem-se estabelecer pontos de convergência e disparidades.
Pontos de convergência. Em primeiro lugar, os “reformatórios” se dão por função não apagar um crime, mas evitar que recomece. Não se pune portanto para apagar um crime, mas para transformar um culpado (atual ou virtual); o castigo deve levar em si uma certa técnica corretiva.
No total, a divergência é a seguinte: cidade punitiva ou instituição coercitiva? De um lado, funcionamento do poder penal repartido em todo o espaço social como espetáculo, discurso. Um poder de punir que agiria em toda a rede social e terminaria não sendo mais percebido como poder de alguns sobre alguns, mas como reação imediata de todos em relação a cada um. De outro, ocupação meticulosa do corpo e do tempo do culpado; gestão autônoma desse poder que se isola tanto do corpo social quanto do poder judiciário propriamente dito.
No fim do século XVIII, há três maneiras de organizar o poder de punir. No direito monárquico, a punição é um cerimonial de soberania; ela utiliza as marcas rituais da vingança que aplica sobre o corpo do condenado; e estende sob os olhos dos espectadores um efeito de terror ainda mais intenso por ser descontínuo, irregular e sempre acima de suas próprias leis. No projeto dos juristas reformadores, a punição é um processo para requalificar os indivíduos como sujeitos de direito; utiliza sinais – não marcas – de representações, cuja circulação deve ser realizada o mais rapidamente possível pela cena do castigo, e a aceitação deve ser a mais universal possível. Enfim no projeto de instituição carcerária que se elabora, a punição é uma técnica de coerção dos indivíduos; ela utiliza processos de treinamento do corpo – não sinais – com os traços que deixa no comportamento; e ela supõe a implantação de um poder específico de gestão da pena. Temos aí três dispositivos que se defrontam na última metade do século XVIII. Três tecnologias de poder.
O problema é então o seguinte: como é possível que o terceiro se tenha finalmente imposto?
Bibliografia:
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 38 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.