Ao contrário da história dos historiadores, a HISTÓRIA PROFÉTICA de KANT não prevê, mas prenuncia o futuro, extraindo dos acontecimentos do tempo o evento singular, que é interpretado como um sinal demonstrativo de uma tendência da humanidade para um fim, seja ele desejado ou combatido. Assim, o debate atual sobre os direitos do homem pode ser interpretado como um “sinal premonitório” de uma tendência da humanidade “para melhor”.
Quando escrevi essas palavras, não conhecia o texto do primeiro documento da Pontifícia Comissão “JUSTITIA ET PAX”, com o título A IGREJA E OS DIREITOS DO HOMEM, que começa assim: “Na era contemporânea, entre os vários sinais dos tempos, não pode passar para o segundo plano a crescente atenção que em todas as partes do mundo se dá aos direitos do homem, seja devido à consciência cada vez mais sensível e profunda que se forma nos indivíduos e na comunidade em torno a tais direitos ou à contínua e dolorosa multiplicação das violações desses direitos”.
A importância do tema dos direitos do homem depende do fato de ele estar extremamente ligado aos dois problemas fundamentais do nosso tempo, a democracia e a paz. Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e efetivamente protegidos não existe democracia, sem democracia não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos que surgem entre os indivíduos, entre grupos e entre as grandes coletividades tradicionalmente indóceis e tendencialmente autocráticas que são os Estados.
A ideia da universalidade da natureza humana é antiga. Mas a transformação dessa ideia filosófica da universalidade da natureza humana em instituição política acontece somente na Idade Moderna através do JUSNATURALISMO, e encontra sua primeira expressão politicamente relevante nas declarações de direitos do fim do século XVIII. Quando lemos, não mais em um texto filosófico mas em um documento político como a DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DA VIRGÍNIA (1778): “Todos os homens são por natureza igualmente livres e possuem alguns direitos inatos dos quais, ao entrar em estado de sociedade, não podem, por nenhuma convenção, privar ou despojar a sua posterioridade”, temos de admitir que nasceu naquele momento uma nova forma de regime político, que não é mais apenas o governo das leis contraposto ao dos homens, mas o governo que ao mesmo tempo é dos homens e das leis, dos homens que fazem as leis, e das leis que encontram um limite em direitos preexistentes dos indivíduos que as próprias leis não podem ultrapassar.
Afirmar que o homem possui direitos preexistentes à instituição do Estado significa virar de cabeça para baixo a concepção tradicional de política a partir de dois pontos de vista: em primeiro lugar, contrapondo o homem, considerado singularmente, à sociedade, à totalidade que por uma antiga tradição foi considerada superior às suas partes; em segundo lugar, considerando o direito, e não o dever, como antecedente na relação moral e na relação jurídica, ao contrário do que havia acontecido em uma antiga tradição através de obras clássicas que vão de Dos Deveres de Cícero a Deveres do Homem de Mazzini.
No documento já citado da Pontifícia Comissão “Justitia et Pax”, reconhece-se que, especialmente nos últimos dois séculos, houve “reservas” por parte dos católicos à difusão das declarações dos direitos do homem, proclamados pelo liberalismo e pelo laicismo. Mas percebe-se que uma mudança de rumo iniciou-se com LEÃO XIII, em especial com a encíclica “Rerum novarum”, de 1891, na qual, entre os direitos de liberdade da tradição liberal, afirma-se o direito de associação, com atenção especial para as associações dos operários e dá-se destaque especial ao direito ao trabalho, que para ser protegido em seus vários aspectos, invoca a contribuição do Estado. Cem anos mais tarde chega-se ao documento à encíclica CENTESIMUS ANNUS, cujo parágrafo 47 contém uma iluminadora “carta dos direitos humanos”. O primeiro desses direitos é o direito à vida, ao qual se seguem o direito a crescer em uma família unida, o direito a amadurecer a própria inteligência e a própria liberdade na busca e no conhecimento da verdade, o direito a participar do trabalho, o direito a formar livremente uma família; e, fonte de todos os direitos precedentes, o direito à liberdade religiosa.
O direito à vida que aparece aqui como o primeiro direito a ser protegido, nas cartas elaboradas em função da REVOLUÇÃO FRANCESA, nunca aparece. Na tradição JUSNATURALISTA, o direito à vida era reconhecido na forma rudimentar enunciada por Hobbes, do direito a não ser morto na guerra de todos contra todos do estado de natureza. Hoje, o direito à vida assume uma importância bem diferente, ainda mais se começarmos a tomar consciência de que ele está se estendendo cada vez mais, como resulta dos mais recentes documentos internacionais e da igreja, à qualidade da vida.
Os direitos do homem, apesar de terem sido considerados naturais desde o início, não foram dados de uma vez por todas. Durante séculos não se considerou de forma alguma natural que as mulheres votassem. Todavia, não há dúvida de que as várias tradições estão se aproximando e formando juntas um único grande desenho da defesa do homem (que compreende os três bens supremos da vida, da liberdade e da segurança social) de toda forma de Poder. A relação política por excelência é uma relação entre poder e liberdade. Quanto mais se estende o poder de um dos dois sujeitos da relação, mais diminui a liberdade do outro, e vice-versa.
O que distingue o momento atual em relação às épocas precedentes e reforça a demanda por novos direitos é a forma de poder que prevalece sobre todos os outros. A luta pelos direitos teve como primeiro adversário o poder religioso; depois, o poder político; e, por fim, o poder econômico. Hoje, as ameaças à vida, à liberdade e à segurança podem vir do poder sempre maior que as conquistas da ciência e das aplicações dela derivadas dão a quem está em condição de usá-las.
O crescimento do saber só fez aumentar a possibilidade do homem de dominar a natureza e os outros homens. Bastam estes três exemplos centrais do debate atual: o direito de viver em um ambiente não poluído, do qual surgiram os movimentos ecológicos que abalaram a vida política tanto dentro dos próprios Estados quanto no sistema internacional; o direito à privacidade, que é colocado em sério risco pela possibilidade que os poderes públicos têm de memorizar todos os dados relativos à vida de uma pessoa e, com isso, controlar os seus comportamentos sem que ela perceba; o direito à integridade do próprio patrimônio genético, que vai bem mais além do que o direito à integridade física.
As transformações do mundo que vivenciamos nos últimos anos, seja por causa da precipitação da crise de um sistema de poder que parecia muito sólido e ambicionava representar o futuro do planeta, seja por causa da rapidez dos progressos técnicos, suscitam em nós o dúplice estado de espírito do encurtamento e da aceleração dos tempos. Sentimo-nos por vezes à beira do abismo e a catástrofe impende. Teríamos pouco motivo para ficar alegres se não fosse pelo fato de um grande ideal como o dos direitos do homem subverter completamente o sentido do tempo, pois se projeta nos tempos longos, como todo ideal, cujo advento depende de um presságio.
Hoje podemos apenas apostar em uma visão da história para a qual é possível dizer que a racionalidade não mora mais aqui. Que a história conduza ao reino dos direitos do homem e não ao reino do Grande Irmão, pode ser somente o objeto de um compromisso.
É verdade que apostar é uma coisa e vencer é outra. Mas também é verdade que em aposta o faz porque tem confiança na vitória. É claro, não basta confiança para vencer. Mas se não se tem a menor confiança, a partida está perdida antes de começar. Depois, se me perguntassem o que é necessário para ser ter confiança, eu voltaria às palavras de Kant: conceitos justos, uma grande experiência e, sobretudo, muito boa vontade.
Bibliografia:
BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.