Recolho neste volume os artigos principais que escrevi sobre o tema dos direitos do homem. Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais; haverá paz estável somente quando existirem cidadãos não mais apenas deste ou daquele Estado, mas do mundo.
Meu primeiro escrito sobre o assunto remonta a 1951. Relendo-o agora percebo que nele estão contidas algumas teses das quais não mais me afastei:
1. os direitos naturais são direitos históricos;
2. nascem no início da era moderna, juntamente com a concepção individualista da sociedade;
3. tornam-se um dos principais indicadores do progresso histórico.
No primeiro ensaio da coletânea, “Sobre os fundamentos dos direitos do homem“, confirmo e aprofundo a tese da historicidade, com base na qual contesto não apenas a legitimidade, mas também a eficácia prática da busca do fundamento absoluto. No segundo ensaio, “Presente e futuro nos direitos do homem”, esboço as várias fases da história dos direitos do homem, e retiro uma nova confirmação de sua expansão. No terceiro escrito, “A era dos direitos”, abordo o significado filosófico-histórico da inversão ocorrida na relação entre Estado e cidadãos, característica da formação do Estado moderno: passou-se da prioridade dos deveres dos súditos à prioridade dos direitos do cidadão. Emergiu daí um modo diferente de encarar a relação política. Ponho particularmente em evidência como ocorreu a ampliação do âmbito dos direitos do homem na passagem do homem abstrato ao homem concreto, através de um processo de gradativa diferenciação ou especificação dos carecimentos e dos interesses, dos quais se solicita o reconhecimento e a proteção. Uma posterior reformulação dos temas da historicidade e da especificação dos direitos do homem é apresentada no ensaio “Direitos do homem e sociedade”, último capítulo da primeira parte desta coletânea.
Na segunda parte, recolhi três discursos sobre os direitos do homem e a Revolução Francesa. O último discurso termina dando ênfase à teoria kantiana do direito cosmopolita, e é a conclusão da argumentação até aqui desenvolvida sobre o tema dos direitos do homem e, ao mesmo tempo, o ponto de partida para novas reflexões.
Na terceira parte, são discutidos problemas tanto históricos como teóricos. No plano histórico, sustento que a afirmação dos direitos do homem deriva de uma radical inversão de perspectiva, característica da formação do Estado moderno, na relação Estado/cidadão ou soberano/súditos: relação que é encarada, cada vez mais, do ponto de vista dos direitos dos cidadãos não mais súditos, e não do ponto de vista dos direitos do soberano, em correspondência com a visão individualista da sociedade, segundo a qual, para compreender a sociedade, é preciso partir dos indivíduos que a compõem, não da sociedade como um todo. A inversão de perspectiva é provocada, no início da era moderna, principalmente pelas guerras de religião, através das quais se vai afirmando o direito de resistência à opressão, o qual pressupõe o direito do indivíduo a gozar de algumas liberdades fundamentais porque naturais, e naturais porque cabem ao homem enquanto tal e não dependem do beneplácito do soberano (entre as quais, em primeiro lugar, a liberdade religiosa).
Do ponto de vista teórico, sempre defendi e continuo a defender que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. Ao lado dos direitos sociais, que foram chamados de direitos de segunda geração, emergiram hoje os chamados direitos de terceira geração, que constituem uma categoria ainda excessivamente vaga, o que nos impede de compreender do que efetivamente se trata. Os direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo ou permite novos remédios para as suas indigências. As exigências de direitos são sempre de duas espécies: ou impedir os malefícios de tais poderes ou obter seus benefícios.
Em um dos ensaios, “Direitos do homem e sociedade”, destaco particularmente a proliferação das exigências de novos conhecimentos e de novas proteções na passagem da consideração do homem abstrato para aquela do homem em suas diversas fases de vida e em seus diversos estágios. Os direitos de terceira geração, como o de viver num ambiente não poluído, não poderiam ter sido sequer imaginados quando foram propostos os de segunda geração, que, por sua vez, não eram sequer concebíveis quando foram promulgadas as primeiras declarações setecentistas. Essas exigências nascem somente quando nascem determinados carecimentos que, por sua vez, nascem em função da mudança das condições sociais e quando o desenvolvimento técnico permite satisfazê-los. Falar de direitos naturais ou fundamentais, inalienáveis ou invioláveis, é usar fórmulas completamente irrelevantes numa discussão de teoria do direito.
No que se refere ao significado da palavra direito na expressão “direitos do homem” o debate é permanente e confuso. Contribuiu, para aumentar a confusão, o encontro cada vez mais frequente entre juristas de tradição e cultura continental e Juristas de tradição anglo-saxônica. A distinção clássica na linguagem dos juristas da Europa continental é entre “direitos naturais” e “direitos positivos”. Na Inglaterra e dos Estados Unidos, há a distinção entre moral rights, e legal rights, que é intraduzível e incompreensível, numa tradição onde o direito e moral são duas esferas bem diferenciadas da vida prática: em italiano, a expressão “direitos legais” ou “jurídicos ” soa redundante, enquanto a expressão “direitos morais” soa contraditória. O único modo para nos entender é reconhecer a comparabilidade entre as duas distinções, em função da qual “direitos morais” enquanto algo contraposto a “direitos legais” ocupa o mesmo espaço ocupado por “direitos naturais” enquanto algo contraposto a “direitos positivos”. Trata-se, em ambos os casos, de uma contraposição entre dois sistemas normativos, onde o que muda é o critério de distinção. Na distinção entre moral rights e legal rights, o critério é o fundamento; na distinção entre “direitos naturais” e “direitos positivos”, é a origem. Mas, em todos os quatro casos, a palavra “direito”, no sentido de direito subjetivo faz referência a um sistema normativo, seja ele chamado de moral ou natural, jurídico ou positivo.
A expressão “direitos morais” torna-se menos estranha quando é relacionada com a expressão “obrigações morais”. De uma obrigação moral não nasce uma obrigação jurídica. Mas quando se introduz a noção de “direito moral”, introduz-se também, necessariamente, a correspondente “obrigação moral”. Ter direito moral em face de alguém significa que há um outro indivíduo que tem obrigação moral para comigo. Se a afirmação do direito precede temporalmente a do dever ou se ocorre o contrário, eis um puro evento histórico, ou seja, uma questão de fato: para dar um exemplo, um tema bastante discutido hoje é o das obrigações de nós contemporâneos em face das futuras gerações. Mas o mesmo tema pode ser considerado do ponto de vista dos direitos das futuras gerações em relação a nós. É absolutamente indiferente, com relação à substância do problema, que comecemos pelas obrigações de uns ou pelos direitos dos outros.
A linguagem dos direitos permanece pouco rigorosa e freqüentemente usada de modo retórico. A maior parte dos direitos sociais permaneceu no papel. Aqui o nome de “direitos” serve unicamente para atribuir um título de nobreza. A linguagem dos direitos atribui uma força particular às reivindicações; mas ela se torna enganadora se ocultar a diferença entre o direito reivindicado e o direito reconhecido e protegido. Não se poderia explicar a contradição entre a literatura que faz a apologia da era dos direitos e aquela que denuncia a massa dos “sem-direitos”. Mas os direitos de que fala a primeira são somente os proclamados nas instituições internacionais e nos congressos, enquanto os direitos de que fala a segunda são aqueles que a esmagadora maioria da humanidade não possui de fato (ainda que sejam solene e repetidamente proclamados).
Bibliografia:
BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.