1. Quando se fala de tolerância no seu significado histórico predominante, o que se tem em mente é o problema da convivência de crenças (religiosas ou políticas) diversas. Hoje, o conceito de tolerância é generalizado para o problema da convivência das minorias étnicas, linguísticas, raciais, para os que são chamados geralmente de “diferentes”, como, por exemplo, os homossexuais, os loucos ou os deficientes.
O motivo pelo qual me ocupo das razões da tolerância no primeiro sentido é que o problema histórico da tolerância é o problema relativo exclusivamente à possibilidade de convivência de confissões religiosas diversas.
2. Da acusação que o tolerante faz ao intolerante, isto é, de ser um fanático, o intolerante se defende acusando-o de, por sua vez, ser um cético ou, pelo menos, um indiferente, alguém que não tem convicções fortes e que considera não existir nenhuma verdade pela qual valha a pena lutar.
Para o intolerante ou para quem se coloca acima da antítese tolerância-intolerância, o tolerante assim o seria por más razões: porque não dá a menor importância à verdade. Mas, ao lado das más razões, existem também boas razões.
3. Começo pela razão de prudência política: a tolerância como mal menor. Entendida desse modo, a tolerância implica a opinião de que a verdade tem tudo a ganhar quando suporta o erro alheio.
Essa razão assume diversos aspectos conforme a diferente natureza das correlações de forças, entre mim ou minha doutrina detentora da verdade e os outros, imersos no erro. Se sou o mais forte, aceitar o erro alheio pode ser um ato de astúcia: a perseguição causa escândalo, o escândalo faz crescer a mancha, a qual, ao contrário, deve ser mantida o mais possível oculta. Se sou o mais fraco, suportar o erro alheio é um estado de necessidade: se me rebelasse, seria esmagado e perderia qualquer esperança de que minha pequena semente pudesse germinar no futuro. Se somos iguais, entra em jogo o princípio da reciprocidade: se me atribuo o direito de perseguir os outros, atribuo a eles o direito de me perseguirem. Em todos esses casos, a tolerância é o resultado de um cálculo e, como tal, nada tem a ver com o problema da verdade.
4. Subindo na escala das boas razões, passamos para a escolha de um autêntico método universal: a tolerância pode significar a escolha do método da persuasão em vez do método da força ou da coerção. Por trás da tolerância entendida desse modo, há uma concepção do homem como capaz de considerar seu próprio interesse à luz do interesse dos outros, bem como da recusa consciente da violência como único meio para obter o triunfo das próprias ideias. A tolerância como algo que implica o método da persuasão foi um dos grandes temas que contribuíram para fazer triunfar na Europa o princípio de tolerância, ao término das sangrentas guerras de religião.
5. Para além das razões de método, pode-se aduzir em favor da tolerância uma razão moral: o respeito à pessoa alheia. O reconhecimento do direito de todo homem a crer de acordo com sua consciência é estreitamente ligado à afirmação dos direitos de liberdade, religiosa e de opinião, que servem como fundamento ao Estado liberal.
O outro deve chegar à verdade por convicção íntima e não por imposição. A tolerância, aqui, não é desejada porque socialmente útil ou politicamente eficaz, mas sim por ser um dever ético. Nesse caso o tolerante não é cético, porque crê em sua verdade. Tampouco é indiferente, porque inspira sua própria ação num dever absoluto, como é o de respeitar a liberdade do outro.
6. Ao lado dessas três doutrinas, que consideram a tolerância do ponto de vista da razão prática, há outras que a consideram do ponto de vista teórico. São as doutrinas segundo as quais a verdade só pode ser alcançada através do confronto. Segundo tais doutrinas, a verdade tem muitas faces, logo, a tolerância é uma necessidade inerente à própria natureza da verdade.
São pelo menos três as posições filosóficas representativas dessa exigência: o sincretismo, de que são expressão as várias tentativas de conjugar cristianismo e marxismo; o ecletismo, ou filosofia do “justo meio”, que se expressa nas propostas de “terceira via” entre liberalismo e socialismo, entre mundo ocidental e mundo oriental, entre capitalismo e coletivismo; e o historicismo relativista, segundo o qual, numa era de politeísmo de valores, o único templo aberto deveria ser o Panteão, um templo no qual cada um pode adorar seu próprio deus.
7. A intolerância pode ter suas boas razões. O próprio termo “tolerância” tem dois significados, um positivo e outro negativo; e, portanto, também tem significado negativo e positivo o termo oposto. Intolerância em sentido positivo é sinônimo de severidade, rigor, firmeza; tolerância em sentido negativo, ao contrário, é sinônimo de condescendência com o mal, com o erro, por falta de princípios, por amor da vida tranquila ou por cegueira diante dos valores.
Se as sociedades despóticas sofrem de falta de tolerância em sentido positivo, as nossas sociedades democráticas e permissivas sofrem de excesso de tolerância em sentido negativo, no sentido de deixar as coisas como estão, de não se escandalizar nem se indignar com mais nada. Entre conceitos extremos, existe uma zona cinzenta, o “nem isto nem aquilo”, cuja maior ou menor amplitude é variável; e é sobre essa variável que se pode avaliar qual sociedade é mais ou menos tolerante, mais ou menos intolerante.
8. Não é fácil estabelecer os limites desse contínuo, para além dos quais uma sociedade tolerante se transforma numa sociedade intolerante.
Excluo a solução proposta por Marcuse em seu conhecido ensaio sobre a tolerância repressiva, que considera repressiva a tolerância tal como exercida nos Estados Unidos, onde as ideias da esquerda radical não são admitidas, enquanto são admitidas e favorecidas as da direita reacionária. Marcuse afirma que boa tolerância é a que tolera apenas as ideias boas. Partindo dessa definição, afirma que uma sociedade tolerante deveria tolerar apenas as ideias progressistas e rechaçar as reacionárias.
Uma posição desse tipo é inaceitável. Quem distingue entre as boas e as más ideias? A tolerância só é tal se forem toleradas também as más ideias.
9. Não é que a tolerância deva ser ilimitada. O que não convence na teoria marcusiaria é o critério de exclusão. É um critério vago porque a avaliação do que é progressista e do que é reacionário é relativa a situações históricas mutáveis; é restritivo porque, se a tolerância é dirigida somente para o reconhecimento de certas doutrinas e não de outras, sua função é completamente desnaturada.
10. Se a tolerância deve ter limites, o único critério razoável para fixa-los pode ser formulado assim: a tolerância deve ser estendida a todos, salvo àqueles que negam o princípio de tolerância.
Esse critério de distinção não é tão claro como parece quando enunciado, uma vez que há várias gradações de intolerância e são vários os âmbitos onde a intolerância pode manifestar-se. Também não pode ser aceito sem reservas pois quem crê na bondade da tolerância o faz porque considera que o único modo de fazer com que o intolerante aceite a tolerância não é a perseguição, mas o reconhecimento de seu direito de expressar-se. O intolerante perseguido e excluído jamais se tornará um liberal. É melhor uma liberdade sempre em perigo, mas expansiva, do que uma liberdade protegida, mas incapaz de se desenvolver.
11. Onde a história destes últimos séculos não parece ambígua é quando mostra a interdependência entre a teoria e a prática da tolerância, por um lado, e o espírito laico. Esse espírito deu origem, por um lado, aos Estados neutros em matéria religiosa e neutros em matéria política; e, por outro, à chamada sociedade aberta, na qual a superação dos contrastes de fé, de crenças, de doutrinas, de opiniões, deve-se ao império da áurea regra segundo a qual minha liberdade se estende até o ponto em que não invada a liberdade dos outros.
Bibliografia:
BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.