A DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO foi aprovada pela Assembleia Nacional, em 26 de agosto de 1789, que decidiu que uma declaração dos direitos devia preceder a Constituição. De 20 a 26 de agosto, o texto pré-selecionado pela Assembleia foi discutido e aprovado.
A primeira defesa ampla, historicamente documentada e filosoficamente argumentada, da Declaração foi a contida em OS DIREITOS DO HOMEM, de THOMAS PAINE, lançada em 1791 e 1792. Para fundar os direitos do homem, Paine oferece uma justificação religiosa. Para encontrar o fundamento dos direitos do homem, é preciso transcender a história e chegar ao momento da origem, quando o homem surgiu das mãos do Criador. A história nada prova salvo os nossos erros, dos quais devemos nos libertar. O único ponto de partida para escapar dela é reafirmar a unidade do gênero humano, que a história dividiu. Só assim se descobre que o homem tem direitos naturais que os precedem; e esses direitos naturais são o fundamento de todos os direitos civis.
Paine, antes de chegar à França, participara ativamente da revolução norte-americana, com vários escritos e, em particular, com o ensaio COMMON SENSE (1776), no qual – embora fosse súdito britânico – criticava asperamente o poder do rei, reclamando o direito dos estados americanos à sua independência, a partir da tese segundo a qual chegara a hora de a sociedade civil se emancipar do poder político.
A relação entre as duas revoluções foi continuamente reexaminada e debatida nos últimos dois séculos. O fato é que foi a REVOLUÇÃO FRANCESA que constituiu, por cerca de dois séculos, o modelo ideal para todos os que combateram pela própria emancipação e pela libertação do próprio povo. Foram os princípios de 1789 que constituíram uma referência obrigatória para os amigos e para os inimigos da liberdade, princípios invocados pelos primeiros e execrados pelos segundos.
A Declaração, desde então até hoje, foi submetida a duas críticas recorrentes e opostas: foi acusada de excessiva abstratividade pelos reacionários e conservadores em geral; e de excessiva ligação com os interesses de uma classe particular, por Marx e pela esquerda em geral.
A acusação de abstratividade foi repetida infinitas vezes: de resto, a abstratividade do pensamento iluminista é um dos motivos clássicos de todas as correntes anti-iluministas. Não preciso repetir a célebre afirmação de De Maistre, que dizia ver ingleses, alemães, franceses e, graças a Montesquieu, saber também que existiam os persas, mas o homem, o homem em geral, esse ele nunca vira e, se é que existia, ele o ignorava. Mas basta citar um juízo de Taine, segundo o qual a maior parte dos artigos da Declaração “não são mais do que dogmas abstratos, definições metafísicas, axiomas mais ou menos literários, ou seja, mais ou menos falsos, ora vagos, ora contraditórios, suscetíveis de mais de um significado e de significados opostos”.
Os direitos aparentemente abstratos eram, na intenção dos constituintes, instrumentos de polêmica política, cada um deles devendo ser interpretado como a antítese de um abuso do poder que se queria combater, já que os revolucionários, mais que uma Declaração abstrata de direitos, tinham querido fazer um ato de guerra contra os tiranos. Se esses direitos foram depois proclamados como se estivessem inscritos numa tábua das leis fora do tempo e da história, isso resultara – como explicará TOCQUEVILLE – do fato de que a Revolução Francesa havia sido uma revolução política que operara como as revoluções religiosas, que consideram o homem em si mesmo, sem se deterem nos traços peculiares que as leis, os costumes e as tradições de um povo podiam ter inserido naquele fundo comum; e operara como as revoluções religiosas porque “parecia ter como objetivo, mais do que a reforma da França, a regeneração de todo o gênero humano”. Foi por essa razão, segundo Tocqueville, que a Revolução pôde acender paixões que, até então, nem mesmo as revoluções políticas mais violentas tinham podido produzir.
A crítica oposta – segundo a qual a Declaração era tão concreta e historicamente determinada que, na verdade, era a defesa do burguês, que existia em carne e osso e lutava pela própria emancipação de classe contra a aristocracia, sem se preocupar muito com os direitos do que seria chamado de Quarto Estado – foi feita pelo jovem MARX no artigo sobre A QUESTÃO JUDAICA.
Quais tenham sido as consequências dessa interpretação – que confundia a ocasião histórica da qual nascera a reivindicação desses direitos, que era a luta do Terceiro Estado contra a aristocracia, com uma questão de princípio, e via no homem apenas o cidadão, e no cidadão, apenas o burguês esse é um tema no qual ainda estamos demasiadamente imersos para sermos capazes de ver onde terminará. Parece-me difícil negar, contudo, que a afirmação dos direitos do homem é um dos pontos firmes do pensamento político universal, do qual não mais se pode voltar atrás.
A acusação feita por Marx à Declaração era a de ser inspirada numa concepção individualista da sociedade. A acusação era justa. Mas é aceitável? Decerto, o ponto de vista no qual se situa a Declaração para dar uma solução ao problema das relações entre governantes e governados é o do indivíduo singular, considerado como o titular do poder soberano, na medida em que, no hipotético estado de natureza pré-social, não existe nenhum poder acima dele. O poder político, ou o poder dos indivíduos associados, vem depois; é o produto de uma invenção humana, como uma máquina. Esse ponto de vista representa a inversão radical do ponto de vista tradicional do pensamento político. Dessa inversão nasce o Estado moderno: primeiro liberal, no qual os indivíduos que reivindicam o poder soberano são apenas uma parte da sociedade; depois democrático, no qual são potencialmente todos a fazer tal reivindicação; e, finalmente, social, no qual os indivíduos, todos (não somente os burgueses), transformados em soberanos sem distinções de classe, reivindicam – além dos direitos de liberdade – os direitos sociais, que são igualmente direitos do indivíduo.
O ponto de vista tradicional tinha por efeito a atribuição aos indivíduos não de direitos, mas sobretudo de obrigações, a começar pela obrigação da obediência às leis, isto é, às ordens do soberano. Os códigos morais e jurídicos foram, ao longo dos séculos, conjuntos de regras imperativas que estabelecem obrigações para os indivíduos, não direitos.
As Declarações de Direito estavam destinadas a inverter essa imagem. Observemos os dois primeiros artigos da Declaração: primeiro, há a afirmação de que os indivíduos têm direitos; depois, a de que o governo obriga-se a garanti-los. Hoje, o próprio conceito de democracia é inseparável do conceito de direitos do homem. Numa democracia, quem toma as decisões coletivas, direta ou indiretamente, são indivíduos singulares – a sociedade democrática não é um corpo orgânico, mas uma soma de indivíduos. Se não fosse assim, não teria nenhuma justificação o princípio da maioria, o qual, não obstante, é a regra fundamental de decisão democrática.
É preciso desconfiar de quem defende uma concepção anti-individualista da sociedade. Através do anti-individualismo, passaram mais ou menos todas as doutrinas reacionárias. Lammenais dizia: “O individualismo, destruindo a ideia de obediência e de dever, destrói o poder e a lei”. Não seria muito difícil encontrar citações análogas na esquerda antidemocrática.
A concepção individualista da sociedade já conquistou muito espaço. Os direitos do homem, que tinham sido e continuam a ser afirmados nas Constituições dos Estados particulares, são hoje reconhecidos e solenemente proclamados no âmbito da comunidade internacional: todo indivíduo foi elevado a sujeito potencial da comunidade internacional, cujos sujeitos até agora considerados eram, eminentemente os Estados soberanos. Kant, que vira no entusiasmo com que fora acolhida a Revolução Francesa um sinal da disposição moral da humanidade, dizia também que o evento tivera tal efeito nos espíritos que não mais podia ser esquecido, já que revelara, na natureza humana, uma disposição e potencialidade para o melhor que nenhum político poderia cancelar. Nós, tendo chegado quase ao fim do século que conheceu duas guerras mundiais e a era das tiranias, podemos até sorrir diante do otimismo do filósofo. Mas podemos sustentar seriamente que a ideia da Constituição fundada no direito natural foi esquecida? O tema dos direitos do homem, que foi imposto à atenção dos soberanos pela Declaração de 1789, não será hoje mais atual do que nunca?
Bibliografia:
BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.