Duas interpretações opostas dominaram no século passado: a interpretação triunfal hegeliana, segundo a qual a história é a realização progressiva da ideia de liberdade; e a interpretação nietzschiana, segundo a qual a humanidade se dirige para a era do niilismo. O mundo dos homens dirige-se para a paz universal, como KANT havia previsto, ou para a guerra exterminadora?
Tem ainda algum sentido propor o problema do sentido da história? Propor o problema do sentido da história significa considerar que existe uma intencionalidade no movimento da história, entendida como direção consciente para um objetivo. E só é possível dar uma resposta a essa questão do objetivo da história buscando um projeto preestabelecido, a ser atribuído a um sujeito coletivo, seja ele a Providência, a Razão, a Natureza, o Espírito Universal. A crença num sujeito universal, por outro lado, não passaria de uma das várias formas possíveis de antropomorfização da história, ou seja, de atribuição de faculdades próprios do homem a um sujeito, (nesse caso, a Humanidade, a Razão Universal) diverso do homem singular, o que permitiria apenas uma reconstrução puramente conjetural do decurso histórico.
Diversa da história conjetural é, para Kant, a HISTÓRIA PROFÉTICA, que tem o fim de descobrir a tendência de desenvolvimento da história humana, mas não tem a pretensão de verdade, ao contrário do que ocorre com a história conjetural. A história profética, (que é a história dos filósofos) busca descobrir num evento extraordinário um indício de uma tendência da humanidade. Somente a história profética (ou filosófica) pode dar uma resposta à questão de se a humanidade está ou não em constante progresso para o melhor.
O que a história profética pode fazer é pressagiar o que poderá ocorrer, não prevê-lo. O evento extraordinário, que é o ponto de partida da história profética, é algo que ocorreu efetivamente. O que torna problemático esse tipo de história é o caráter significativo ou não do evento pré-selecionado, que pode influir sobre a credibilidade da predição. O que pode hoje, no período do bicentenário da Revolução, suscitar o nosso interesse é o fato de Kant ter captado na Revolução Francesa o evento extraordinário, de onde extraiu o seu presságio sobre o futuro da humanidade.
As páginas de Kant sobre a Revolução Francesa encontram-se no ensaio “Se o gênero humano está em constante progresso para o melhor”, incluído na obra O conflito das faculdades, publicada em 1798.
Um dos seus parágrafos intitula-se “De um evento de nosso tempo que revela a tendência moral da humanidade”. O evento é “a revolução de um povo rico espiritualmente”, o qual – embora tenha acumulado misérias e crueldades – encontrou nos espíritos dos espectadores uma participação de aspirações que se aproximava do entusiasmo, definido como “participação no bem com paixão, que se refere sempre e apenas ao que é ideal, ao que e puramente moral” e que não pode ter outra causa senão “uma disposição moral da espécie humana”.
O ponto central da tese kantiana é que tal disposição moral se manifesta na afirmação do direito que tem um povo a não ser impedido de se dar a Constituição civil que creia ser boa. Para Kant, essa Constituição só pode ser republicana, cuja bondade consiste em ser ela a única capaz de evitar por princípio a guerra. Para Kant, a força e a moralidade da Revolução residem na afirmação desse direito do povo a se dar livremente uma Constituição em harmonia com os direitos naturais dos indivíduos singulares, de modo tal que aqueles que obedecem às leis devem também se reunir para legislar.
Kant sabia muito bem que a mola do progresso não é a calmaria, mas o conflito. Numa época de guerras incessantes entre Estados soberanos, ele compreendera que era necessário um autodisciplinamento do conflito, que pudesse chegar até a constituição de um ordenamento civil universal.
Um dos aspectos menos estudados de Para a paz perpétua (1795) é a introdução, por parte de Kant, ao lado do direito Público interno e do externo, de uma terceira espécie de direito, que ele chama de “ius cosmopolíticum”. Dos três artigos definitivos do tratado imaginário para uma paz perpétua, o primeiro (que afirma que a Constituição de todo Estado deve ser republicana) pertence ao direito público interno; o segundo (para o qual o direito internacional deve se fundar numa federação de Estados livres), pertence ao direito público externo. Mas Kant acrescenta um terceiro artigo, que diz o seguinte: “O direito cosmopolita deve ser limitado às condições de uma hospitalidade universal”.
Kant julga dever acrescentar um terceiro gênero de direito público porque, além das relações entre o Estado e os seus cidadãos e daquelas entre o Estado e os outros Estados, ele considera que devam ser consideradas também as relações entre cada Estado particular e os cidadãos dos outros Estados. Disso derivam duas máximas: no que se refere à Primeira relação, o dever de hospitalidade, ou o direito de um estrangeiro que chega ao território de um outro Estado a não ser tratado com hostilidade; no que se refere à segunda relação, “o direito de visita que cabe a todos os homens, ou seja, de passar a fazer parte da sociedade universal, em virtude do direito comum à posse da superfície da Terra, sobre a qual, sendo ela esférica, os homens não podem se dispersar isolando-se ao infinito, mas devem finalmente se encontrar e coexistir”. Desses dois direitos dos cidadãos do mundo derivam dois deveres dos Estados: do primeiro, o dever de permitir ao cidadão estrangeiro o ingresso no seu próprio território; do segundo, o dever do hóspede de não se aproveitar da hospitalidade para transformar a visita em conquista.
Nessa relação de reciprocidade entre o direito de visita do cidadão estrangeiro e o dever de hospitalidade do Estado visitado, Kant tinha originariamente prefigurado o direito de todo homem a ser cidadão não só do seu próprio Estado, mas do mundo inteiro; além disso, havia representado toda a Terra como uma potencial cidade do mundo, precisamente como uma cosmópolis ( ideia segundo a qual cada homem é potencialmente cidadão do mundo, não de um Estado). É com esse tipo de relação – entre Estados e indivíduos dos outros Estados – que Kant representava o desenvolvimento histórico do direito, no qual o ordenamento jurídico universal, a cidade do mundo ou cosmópolis, representa a quarta e última fase do sistema jurídico geral, depois do estado de natureza (onde só há o direito privado, o direito entre indivíduos), depois do estado civil (regulado pelo direito público interno), depois da ordem internacional (regulada pelo direito público externo).
É fato inquestionável que a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948, colocou as premissas para transformar também os indivíduos singulares em sujeitos jurídicos do direito internacional, tendo assim iniciado uma nova fase do direito internacional, a que torna esse direito não apenas o direito de todas as gentes, mas de todos os indivíduos.
Entre as muitas celebrações da Revolução Francesa, pode encontrar dignamente o seu lugar a interpretação que dela formulou Kant; interpretação que é a única capaz de salvar o valor perene desse evento, para além de todas as controvérsias dos historiadores.
Um sinal premonitório não é uma prova. É apenas um motivo para que não permaneçamos espectadores passivos e para que não encorajemos, com nossa passividade, os que dizem que “o mundo vai ser sempre como foi até hoje”; estes últimos, como diz Kant – “contribuem para fazer com que sua previsão se realize”. Que não triunfem os inertes!
Bibliografia:
BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.