A Era dos Direitos: A Resistência à Opressão, Hoje

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1. O velho problema da resistência à opressão voltou a se tornar atual graças à explosão do movimento de “contestação”. Como expediente para destacar a diferença entre os dois fenômenos, vale a referência ao seu respectivo contrário. Enquanto contrária à obediência, a resistência compreende todo comportamento de ruptura contra a ordem constituída que ponha em crise o sistema. Enquanto contrária à aceitação, a contestação se refere a uma atitude de crítica, que põe em questão a ordem constituída sem necessariamente pô-la em crise. Enquanto a resistência é compatível com o uso da violência, a violência do contestador é sempre apenas ideológica.

Partindo do renovado interesse pelo problema da resistência, pretendo responder a duas questões: a) a resistência, hoje, por quê?; b) a resistência, hoje, como?

2. O problema do direito de resistência perdeu – ao longo do século XIX – grande parte do seu interesse. Podem-se indicar duas razões para esse declínio, uma ideológica, outra institucional.

Uma das características marcantes das ideologias políticas do século XIX foi a crença no fenecimento natural do Estado. Essa ilusão derivava da concepção de que, através da Reforma, da revolução científica e da revolução industrial, haviam se iniciado dois processos de desconcentração do poder, com a consequente desmonopolização do poder ideológico-religioso (proclamação da liberdade religiosa e da liberdade de pensamento), e com a desmonopolização do poder econômico (liberdade de iniciativa econômica). Teria restado ao Estado apenas o monopólio do poder coercitivo, a ser usado em defesa do antagonismo das ideias e da concorrência dos interesses.

3. Do ponto de vista institucional, o Estado liberal e (posteriormente) democrático foi caracterizado por um processo de regulamentação das exigências provenientes da burguesia em ascensão, que pode ser chamado de processo de “constitucionalização” do direito de resistência e de revolução.

A constitucionalização dos remédios contra o abuso do poder ocorreu através de dois institutos: o da separação dos poderes e o da subordinação de todo poder estatal ao direito (o chamado “constitucionalisrno”). O segundo processo foi o que deu lugar à figura do Estado de direito, ou seja, do Estado no qual todo poder é exercido no âmbito de regras jurídicas. Ele corresponde ao processo de transformação do poder tradicional, fundado em relações pessoais e patrimoniais, num poder legal e racional, essencialmente impessoal.

Com relação às exigências que visavam a dar alguma garantia contra as formas de usurpação do poder legítimo, houve dois principais institutos que caracterizam a concepção democrática do Estado. O primeiro é a constitucionalização da oposição, que torna lícita a formação de um poder alternativo. O segundo é a investidura popular dos governantes e a verificação periódica dessa investidura por parte do povo através do sufrágio. Com o instituto do sufrágio universal ocorre a constitucionalização do poder do povo de derrubar os governantes, poder que estava anteriormente reservado apenas ao fato revolucionário.

4. O renovado interesse pelo problema da resistência depende do fato de que ocorreu uma inversão da concepção e da práxis política que formaram o Estado liberal e democrático do século XIX. Do ponto de vista institucional, a situação de nosso tempo caracteriza-se por um processo que se orienta tanto para a remonopolização do poder econômico, através da progressiva concentração das empresas e dos bancos, quanto para a remonopolização do poder ideológico, através da formação de grandes partidos de massa (chegando ao limite do partido único), bem como através do controle que os detentores do poder econômico exercem sobre os meios de formação da opinião pública nos países capitalistas.

5. Quando o tipo de Estado que se propôs a absorver o direito à resistência entra em crise, se recoloca o velho problema e voltam a ecoar as velhas soluções. Entre as velhas teorias sobre o direito de resistência e as novas, há diferenças que merecem ser destacadas:

a) o problema da resistência é visto hoje como fenômeno coletivo e não individual, em relação tanto ao sujeito ativo quanto ao sujeito passivo do ato ou dos atos de resistência. Agora, por um lado, conservou-se como fenômeno típico de resistência individual a objeção de consciência. Por outro, nem mesmo os anarquistas promovem mais atentados contra os chefes de Estado;

b) o que hoje se tende a derrubar não é uma determinada forma de Estado, mas uma determinada forma de sociedade. Ninguém pensa hoje que se possa renovar o mundo abatendo um tirano.

c) a maior diferença reside na motivação e nas consequentes argumentações com as quais o problema é enfrentado. Enquanto as velhas teorias discutiam sobre o caráter licito ou ilícito da resistência em suas várias formas, ou seja, colocavam o problema em termos jurídicos, quem hoje discute sobre resistência ou revolução o faz em termos essencialmente políticos, ou seja, não se pergunta se é justa, mas se é adequada à finalidade.

6. Quem quiser buscar uma comprovação do que foi dito deveria fazer uma análise dos dois grandes movimentos de resistência que hoje dividem o mundo, o que se expressa nos partidos revolucionários (em suas diversas acepções) e o que se expressa nos movimentos de desobediência civil. Para simplificar: leninismo e gandhismo. A discriminação entre um e outro é o uso da violência; e, portanto, do ponto de vista ideológico, a justificação ou não justificação da violência.

Menos óbvio é o fato de que a própria teoria da desobediência civil percorreu um longo caminho de sua justificação política. O fato de que se trate agora de comportamento coletivo e não mais individual implica uma revisão do tradicional contraste entre ética individual (na qual a violência é, na maioria dos casos, ilícita) e ética de grupo (na qual a violência é considerada lícita). Em segundo lugar, com a teoria e a práxis gandhianas, foi introduzida no âmbito do que tem sido chamado de resistência passiva uma ulterior distinção, entre não-violência negativa e não-violência positiva. Um dos preceitos fundamentais da pregação gandhiana é o de que as campanhas não-violentas devem ser sempre acompanhadas do chamado “trabalho construtivo”, ou seja, do conjunto de comportamentos que devem demonstrar ao adversário que se tem a intenção de construir um modo melhor de convivência com o qual o próprio adversário deverá se beneficiar. Finalmente, a justificação que hoje se tende a dar da não-violência não é mais religiosa ou ética, e sim política. Pelo menos em duas direções: a) ao se tomar consciência do fato de que o uso de certos meios prejudica a obtenção do fim, o emprego de meios não violentos se torna politicamente mais produtivo; b) diante das dimensões cada vez mais gigantescas da violência institucionalizada e organizada, a prática da não-violência é talvez a única alternativa política à violência do sistema.

7. As várias formas de desobediência civil têm em comum a sua finalidade principal, que é mais a de tornar difícil a obtenção da finalidade visada pelo outro do que substituí-lo.

Finalmente, pergunto-me se não seria oportuno distinguir entre as várias formas de resistência passiva (resistência não violenta) e o poder negativo, isto é, o poder de impedir tudo. Compreendo que uma certa confusão pode derivar do fato de que tanto a greve quanto o poder de veto visam à mesma finalidade, ou seja, a de paralisar o exercício de um poder dominante. Mas, apesar disso, existem diferenças que merecem ser destacadas.

Uma coisa é impedir que uma lei, uma decisão seja implementada (poder de veto), e outra é torná-la ineficaz, depois de já ter sido implementada, através do seu não-cumprimento. O poder de veto é habitualmente exercido no vértice (como no caso em que o chefe de Estado veta uma lei aprovada pelo parlamento); a resistência passiva é exercida na base. O poder de veto serve habitualmente à conservação do status quo; a resistência passiva visa geralmente à mudança. Em suma: parece-me que poder de veto e resistência passiva são, tanto estrutural quanto funcionalmente, duas coisas diversas. Por isso, teria dúvidas sobre a inclusão de ambas numa mesma categoria, sob a denominação comum de “poderes negativos”.

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Bibliografia:

BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

Rolf Amaro

Nascido em 83, formado em Ciências Sociais, músico, sempre ando com um livro na mão. E a Ana,minha senhora, na outra.

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