Num discurso geral sobre os direitos do homem, deve-se ter em mente que teoria e prática percorrem duas estradas diversas e a velocidades muito desiguais. Nestes últimos anos, falou-se de direitos do homem muito mais do que se conseguiu fazer para transformar aspirações (nobres, mas vagas), exigências (justas, mas débeis), em direitos propriamente ditos.
Pode-se afirmar que o desenvolvimento da teoria e da prática dos direitos do homem ocorreu, a partir do final da guerra, em duas direções: na de sua universalização e de sua multiplicação. Irei me deter em particular no processo da multiplicação, pois ele se presta melhor a algumas considerações sobre a estreita conexão existente entre mudança social e nascimento de novos direitos, temas que podem ser mais interessantes para uma reunião de sociólogos do direito, cuja tarefa específica é refletir sobre o direito como fenômeno social.
Essa multiplicação ocorreu de três modos: a) porque aumentou a quantidade de bens considerados merecedores de tutela; b) porque foi estendida a titularidade de alguns direitos típicos a sujeitos diversos do homem; c) porque o próprio homem não é mais considerado como homem em abstrato, mas é visto na especificidade de suas diversas maneiras de ser em sociedade, como criança, velho, doente, etc.
Com relação ao primeiro processo, ocorreu a passagem dos direitos de liberdade negativa – de religião, de opinião, de imprensa, etc.- para os direitos políticos e sociais, que requerem uma intervenção direta do Estado. Com relação ao segundo, ocorreu a passagem da consideração do indivíduo para sujeitos diferentes do indivíduo, como a família, as minorias étnicas e religiosas, toda a humanidade em seu conjunto; e até mesmo para sujeitos diferentes dos homens, como os animais. Com relação ao terceiro processo, a passagem ocorreu do homem genérico para o homem específico, com base em diferentes critérios de diferenciação (o sexo, a idade, as condições físicas), que não permitem igual tratamento e igual proteção.
Essa universalidade na atribuição e no eventual gozo dos direitos de liberdade não vale para os direitos sociais, e nem mesmo para os direitos políticos, diante dos quais os indivíduos são iguais só genericamente, mas não especificamente. Durante séculos, somente os homens do sexo masculino – e nem todos – tiveram o direito de votar. Isso quer dizer que, na afirmação e no reconhecimento dos direitos políticos, não se podem deixar de levar em conta determinadas diferenças, que justificam um tratamento não igual. Do mesmo modo, isso ocorre no campo dos direitos sociais.
Igualdade e diferença têm uma relevância diversa conforme estejam em questão direitos de liberdade ou direitos sociais. Essa é uma das razões pelas quais, no campo dos direitos sociais, mais do que naquele dos direitos de liberdade, ocorreu a proliferação dos direitos; através do reconhecimento dos direitos sociais, surgiram novos personagens antes desconhecidos nas Declarações dos direitos de liberdade: a mulher e a criança, o velho, o doente e o demente, etc.
Parto da distinção entre as duas tarefas essenciais da sociologia do direito: a de investigar qual a função do direito na mudança social; e a de analisar a maior ou menor aplicação das normas jurídicas numa determinada sociedade, relativas aos direitos do homem. Ambas as tarefas têm uma particular aplicação naquela esfera de todo ordenamento jurídico que compreende o reconhecimento e a proteção dos direitos do homem.
A doutrina dos direitos do homem nasceu da filosofia jusnaturalista, a qual – para justificar a existência de direitos pertencentes ao homem independentemente do Estado – partira da hipótese de um estado de natureza, estado pré-estatal e, em alguns escritores, até mesmo pré-social, onde os direitos do homem são poucos e essenciais: o direito à vida e à sobrevivência, que incluí também o direito à propriedade; e o direito à liberdade. Era uma mera ficção doutrinária, que devia servir para justificar, como direitos inerentes à natureza do homem, exigências de liberdade provenientes dos que lutavam contra o dogmatismo das Igrejas e contra o autoritarismo dos Estados. A realidade de onde nasceram as exigências desses direitos era constituída pelas lutas e pelos movimentos que lhes deram vida e as alimentaram, cujas razões, se quisermos compreendê-las, devem ser buscadas na realidade social da época.
Enquanto a relação entre mudança social e nascimento dos direitos de liberdade era menos evidente, a relação entre o nascimento e crescimento dos direitos sociais, por um lado, e a transformação da sociedade, por outro, é evidente. Prova disso é que as exigências de direitos sociais tornaram-se tanto mais numerosas quanto maior foi a transformação da sociedade. São certas transformações sociais e inovações técnicas que fazem surgir novas exigências, inexequíveis antes que essas transformações e inovações tivessem ocorrido. Isso é uma ulterior confirmação da sociabilidade, ou da não-naturalidade, desses direitos. Para darmos um exemplo, a exigência de uma maior proteção dos velhos jamais teria podido nascer se não tivesse ocorrido o aumento do número de velhos e de sua longevidade, dois efeitos de modificações ocorridas nas relações sociais e resultantes dos progressos da medicina.
Ainda mais importante é a tarefa dos sociólogos do direito no que se refere à aplicação das normas jurídicas, ou do fenômeno que é cada vez mais estudado sob o nome de implementation. O campo das normas que declaram, reconhecem, definem, atribuem direitos ao homem aparece como aquele onde é maior a defasagem entre a posição da norma e sua efetiva aplicação. Um direito cujo reconhecimento e cuja efetiva proteção são adiados, e cuja execução é apenas uma obrigação moral ou, no máximo, política, pode ainda ser chamado corretamente de “direito”?
A existência de um direito, seja em sentido forte ou fraco, implica a existência de um sistema normativo, onde por “existência” deve entender-se tanto o fato exterior de um direito histórico ou vigente quanto o reconhecimento de um conjunto de normas como guia da própria ação. A figura do direito tem como correlato a figura da obrigação. Assim como não existe pai sem filho e vice-versa, também não existe direito sem obrigação e vice versa.
O jusnaturalista objetará que existem direitos naturais ou morais absolutos, que são direitos também em relação a qualquer outro sistema normativo, histórico ou positivo. Mas uma afirmação desse tipo é contraditada pela variedade dos códigos naturais e morais propostos, bem como pelo próprio uso corrente da linguagem, que não permite chamar de “direitos” a maior parte das exigências ou pretensões validadas doutrinariamente enquanto elas não forem acolhidas num ordenamento jurídico positivo. Antes que as mulheres obtivessem o direito de votar, será que se podia corretamente falar de um direito natural ou moral das mulheres a votar?
Esse discurso adquire um interesse particular quando se pensa nos direitos do homem que experimentaram historicamente a passagem de um sistema de direitos em sentido fraco, inseridos em códigos de normas morais, para um sistema de direitos em sentido forte, como o são os sistemas jurídicos dos Estados nacionais. E hoje, ocorreu a passagem de um sistema mais forte, como o nacional não despótico, para um sistema mais fraco como o internacional, onde os direitos proclamados são violados, sem que as violações sejam punidas. No sistema internacional tal como ele existe atualmente, inexistem condições necessárias para que possa ocorrer a passagem dos direitos em sentido fraco para direitos em sentido forte: a) a de que o reconhecimento e a proteção de pretensões ou exigências contidas nas Declarações sejam considerados condições necessárias para que um Estado possa pertencer à comunidade internacional); b) a existência, no sistema internacional, de um poder comum suficientemente forte para reprimir a violação dos direitos declarados.
Não há melhor ocasião do que este congresso internacional de estudiosos – em particular, de sociólogos do direito – para denunciar o abuso que se faz do termo “direito” nas declarações deste ou daquele direito do homem na sociedade internacional. Uma coisa é ter um direito que é, enquanto reconhecido e protegido; outra é ter um direito que deve ser, mas que, para ser, precisa transformar-se, de objeto de discussão de uma assembleia de especialistas, em objeto de decisão de um órgão legislativo dotado de poder de coerção.
Essa defasagem só pode ser superada pelas forças políticas. Mas os sociólogos do direito são, entre os cultores de disciplinas jurídicas, os que estão em melhores condições para documentar essa defasagem, explicar suas razões e reduzir suas dimensões.
Bibliografia:
BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.