Resumo de Etapas do Pensamento Sociológico – Natureza Humana e Ordem Social. Raymond Aron apresenta Auguste Comte. Boa leitura!
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A estática social é comparável à anatomia: estuda como se organizam os diferentes elementos do corpo social. Contudo, como a sociologia tem por objeto a história da humanidade considerada como formando um só povo, esta estética se torna a análise da estrutura de toda sociedade humana. É no SYSTÈME DE POLITIQUE POSITIVE que a concepção comtista da estática encontra seu desenvolvimento completo.
Segundo Auguste Comte, pode-se dizer que o homem é ao mesmo tempo sentimento, atividade e inteligência. O homem é, antes de tudo, um ser essencialmente ativo. Mas o impulso da atividade virá sempre do coração (no sentido de sentimento). Contudo, a atividade animada pela afeição, precisa ser controlada pela inteligência. Segundo Comte, a inteligência nunca será mais do que um órgão de direção ou de controle.
Pode-se distinguir em seguida, nos sentimentos, o que está relacionado com o egoísmo e o que está relacionado com o altruísmo e a abnegação. O homem é egoísta, mas não exclusivamente egoísta. As inclinações voltadas para os outros, que desabrocham em abnegação e amor, existem desde o início. A história não altera a natureza humana. Para Comte as inclinações essenciais estão presentes desde a origem.
Disso não resulta, porém, que a sucessão das sociedades não traga nada ao homem. A história lhe dá a possibilidade de realizar o que há de mais nobre na sua natureza, e favorece o desenvolvimento progressivo das disposições altruístas. A história é indispensável para que a inteligência humana atinja seu fim imanente e realize sua vocação própria. O verdadeiro objetivo consiste em fazer com que os homens sejam movidos, cada vez mais, por sentimentos desinteressados e não por instintos egoístas, e que o órgão de controle que dirige a atividade humana possa realizar plenamente sua função, descobrindo as leis que comandam a realidade. Essa interpretação da natureza humana nos permite passar à análise da natureza social.
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Nos sete capítulos do primeiro tomo do SYSTÈME DE POLITIQUE POSITIVE, Auguste Comte esboça sucessivamente uma teoria da religião, uma teoria da propriedade, uma teoria da família, uma teoria da linguagem, uma teoria do organismo social, ou da divisão do trabalho, antes de terminar consagrando um capítulo à existência social sistematizada pelo sacerdócio – esboço da sociedade humana que se tornou positivista – e outro relativo aos limites gerais de variação próprios à ordem humana – explicação estática da possibilidade da dinâmica, ou, ainda, explicação, a partir das leis da estática, da possibilidade e necessidade das variações históricas. Esses diferentes capítulos constituem uma teoria da estrutura fundamental das sociedades.
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A análise da religião tem por objetivo mostrar a função da religião em toda sociedade humana. A religião comporta um aspecto intelectual, o dogma; um aspecto afetivo, o amor, que se exprime no culto; e um aspecto prático, que Comte chama de regime. O culto regula os sentimentos, e o regime o comportamento privado ou público dos crentes. A religião dirige-se simultaneamente à inteligência, ao sentimento e à ação, isto é, a todas as disposições do ser humano. É a religião que constitui a base da ordem social.
Deve-se fazer uma aproximação dos dois capítulos relativos à propriedade e à linguagem. Essa aproximação corresponde ao pensamento profundo de Auguste Comte. A propriedade é a projeção da atividade na sociedade, enquanto a linguagem é a projeção da inteligência. A lei comum à propriedade e à linguagem é a lei da acumulação. Há progresso na civilização porque as conquistas materiais e intelectuais não desaparecem com aqueles que as realizaram. A propriedade é a acumulação dos bens transmitidos de uma geração a outra. Ao recebermos uma linguagem, recebemos uma cultura criada pelos nossos antepassados.
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Há ainda um capítulo sobre a família, ao qual está relacionado o capítulo dedicado ao organismo social, ou à divisão do trabalho. A família é essencialmente a unidade afetiva, e o organismo social, ou a divisão do trabalho, corresponde ao elemento ativo da natureza humana.
A teoria da família, de Comte, considera implicitamente como exemplar a família do tipo ocidental. O doutrinário do positivismo esforça-se sobretudo por demonstrar que as relações existentes dentro da família eram características ou exemplares das diversas relações que podem existir entre as pessoas humanas, e também que a afetividade humana recebia educação e formação na família.
As relações familiares podem ser relações de igualdade, entre irmãos; relações de veneração, entre filhos e pais; relações de bondade, entre pais e filhos; relações complexas de comando e obediência, entre o homem e a mulher. Segundo Auguste Comte, o homem, ativo e inteligente, deve ser obedecido pela mulher, que é essencialmente sensibilidade. Ao mesmo tempo, na família, os homens tem a experiência da continuidade histórica e aprendem o que corresponde à condição básica da civilização: a transmissão, de geração para geração, do capital físico e das aquisições intelectuais.
As ideias essenciais de Comte, sobre a divisão do trabalho, são as da diferenciação das atividades e da cooperação entre os homens, ou, a da separação dos ofícios e a da combinação dos esforços. Mas o princípio fundamental do positivismo é reconhecer o primado da força na organização prática da sociedade. Para Comte, a sociedade é e será dominada pela força do número ou da riqueza, ficando entendido que, entre uma e outra, não há uma diferença essencial de qualidade.
Entretanto, uma sociedade ajustada à natureza humana deve comportar uma contrapartida ou correção ao domínio da força, que seria o poder espiritual. Sua função essencial será lembrar os poderosos de que se devem limitar a executar uma função social, e que sua situação de comando não implica superioridade moral ou espiritual.
Para que o poder espiritual preencha todas as suas funções, e para que a verdadeira distinção entre o temporal e o espiritual seja enfim reconhecida e aplicada, é necessária a história, uma necessidade descoberta pela análise estática da distinção entre os dois poderes.
Esse estudo da estática elucida o sentido da dinâmica, do tríplice ponto de vista da inteligência, da atividade e do sentimento. A história da inteligência vai do fetichismo ao positivismo, isto é, da síntese baseada na subjetividade e na projeção sobre o mundo exterior de uma realidade semelhante à da consciência, até a descoberta e a constituição das leis que comandam os fenômenos. A atividade passa da fase militar à fase industrial, isto é, da luta dos homens entre si à luta vitoriosa do homem com a natureza. Finalmente, a história da afetividade é a do desenvolvimento progressivo das disposições altruístas, sem que o homem deixe jamais de ser, espontânea e primariamente, egoísta.
Essa tríplice significação da história resulta da estática, que permite compreender a história com relação à estrutura fundamental da sociedade.
A história leva, simultaneamente, a uma diferenciação crescente das funções sociais e a uma unificação crescente das sociedades. Poder temporal e poder espiritual serão mais distintos do que nunca, na fase final, e essa distinção será condição para um consenso mais estreito e para uma unidade profunda mais sólida. Os homens aceitarão a hierarquia temporal porque terão consciência da precariedade dessa hierarquia e reservarão seu apreço supremo para a ordem espiritual que talvez seja a inversão da hierarquia temporal.
Bibliografia:
ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. 7ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.