Resumo de Etapas do Pensamento Sociológico – Introdução. Assim terminamos todos os capítulos da obra de Raymond Aron. Boa leitura!
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Este livro me foi sugerido pela experiência dos congressos mundiais da Associação Internacional de Sociologia. Desde que nossos colegas soviéticos passaram a participar, esses congressos ofereceram uma oportunidade única de ouvir o diálogo entre sociólogos que se baseiam numa doutrina do século passado e, de outro lado, sociólogos formados nas técnicas modernas de observação e experimentação, na prática da investigação por meio de sondagens, questionários ou entrevistas.
A sociologia de inspiração marxista tende a uma interpretação de conjunto das sociedades modernas, a fim de situá-las no contexto da história universal. O capitalismo sucede o regime feudal, da mesma forma como este sucedeu a economia antiga e será sucedido pelo socialismo. A mais-valia foi retirada por uma minoria, em prejuízo das massas trabalhadoras, no início por meio da escravidão; depois, graças à servidão; nos nossos dias, graças ao trabalho assalariado. No futuro, após o regime de trabalho assalariado, desaparecerá a mais-valia e, com ela, os antagonismos de classes.
Uma doutrina como essa, comparada às ciências sociais particulares, caracteriza-se por uma intenção totalizante e abrange o conjunto ou o todo de cada sociedade, apreendida em seu movimento. Por conseguinte, ela conhece, no essencial, o que é, assim como o que será. Não duvida de que o regime futuro seja superior aos regimes do passado.
A maior parte dos sociólogos ocidentais, e entre eles principalmente os norte-americanos, ignoram as leis da macrossociologia. Não acreditam na veracidade dessas leis. A sociologia norte-americana é essencialmente analítica e empírica. Multiplica investigações por meio de questionários e de entrevistas, para determinar de que modo vivem, pensam, julgam os homens em sociedade ou, se preferimos, os indivíduos socializados. A finalidade da pesquisa é precisar a correlação entre variáveis, a ação de cada uma delas sobre o comportamento de uma ou outra categoria social.
Esse tipo de sociologia, por ser analítica e empírica pode, além de indivíduos, atingir conjuntos ou grupos reais, classes latentes, que são ignoradas por aqueles que pertencem a elas e que constituem totalidades concretas.
A antítese de uma sociologia sintética e histórica (uma ideologia) e de uma sociologia empírica e analítica (uma ‘sociografia’) não exclui de modo algum que a sociologia tenha funções análogas na União Soviética e nos Estados Unidos. Nos dois países a sociologia não questiona a ordem social nos seus traços fundamentais: a sociologia marxista porque justifica o poder do Estado e do partido (ou do proletariado), a sociologia analítica dos Estados Unidos porque admite implicitamente os princípios da sociedade norte-americana.
A sociologia marxista do século XIX era revolucionária: saudava antecipadamente a revolução que deveria destruir o regime capitalista. Hoje, serve para justificar a ordem estabelecida. Conservadora na União Soviética, a sociologia marxista é revolucionária na França e nos Estados Unidos.
Os sociólogos americanos são mais democratas do que republicanos, favoráveis à mobilidade social e à integração dos negros, hostis às discriminações raciais ou religiosas. Criticam a realidade norte-americana em nome das ideias ou dos ideais do seu país.
Em suma, os sociólogos soviéticos são conservadores com relação a sua própria sociedade, e revolucionários com relação às demais. Os norte-americanos são reformistas quando se trata de sua própria sociedade e, implicitamente pelo menos, com relação a todas as sociedades. Em 1966, essa oposição não parece tão marcante como em 1959, data do congresso mundial a que me refiro. Desde então, na União Soviética se desenvolveu a pesquisa experimental e quantitativa de problemas claramente delimitados.
Quando comecei a trabalhar neste livro, perguntava-me se a sociologia marxista e a sociologia empírica tinham algo em comum. O retorno às fontes tinha por finalidade dar uma resposta a essa questão.
A sociologia é o estudo, que pretende ser científico, do social como social, seja no nível elementar das relações interpessoais, seja no nível macroscópico de vastos conjuntos. Esta definição permite compreender como é difícil escrever uma história da sociologia, saber onde ela começa e termina. Há muitas maneiras de apreender a intenção cientifica e o objeto social.
Os sociólogos preconizam métodos empíricos, praticam pesquisas por sondagem, empregam um sistema conceitual próprio, questionam a realidade social sob um certo ângulo, possuem uma ótica específica. Esse modo de pensar se nutre de tradição cujas origens são mostradas pela galeria de retratos que preparei.
Comecei por Montesquieu porque o autor de ‘O espírito das leis’ pode ser considerado ao mesmo tempo um filósofo político e um sociólogo. Ele analisa e compara os regimes políticos à maneira dos filósofos clássicos; simultaneamente esforça-se por apreender todos os setores do conjunto social, e por definir as relações múltiplas entre as variáveis.
Escolhi Alexis de Tocqueville porque muitos sociólogos o ignoram, especialmente os franceses. Demasiado liberal para o seu partido, insuficientemente entusiasta das novas ideias aos olhos dos republicanos, ele não foi adotado nem pela direita nem pela esquerda, permanecendo suspeito a todos.
Politicamente isolado pelo estilo da sua adesão reticente à democracia, Tocqueville se opõe a algumas das ideias diretrizes da escola sociológica da qual Auguste Comte passa por fundador e Durkheim por principal representante, pelo menos na França. A sociologia implica a tematização do social como tal, mas não necessariamente que as instituições políticas possam ser reduzidos à infraestrutura social. Ora, a passagem da tematização do social para a negação do caráter específico da política, é muito fácil: sob formas diferentes encontramos esse mesmo desvio em Auguste Comte e em Karl Marx ou Émile Durkheim.
O leitor poderá especular sobre a razão que me levou a escolher Auguste Comte em lugar de Saint-Simon. A razão é simples: supondo que a maior parte dos temas do positivismo já estejam presentes na obra do conde de Saint-Simon, esses temas só se organizam com rigor filosófico graças ao gênio estranho do politécnico, que logo se encerrou voluntariamente na construção intelectual que ele próprio edificou.
A exposição do pensamento marxista é polêmica, menos contra Marx do que contra as interpretações que estavam muito em moda há dez anos, e que subordinavam ‘O capital’ ao ‘Manuscrito econômico filosófico’, deixando de levar em conta a ruptura entre as obras da juventude de Marx, anteriores a 1845, e as obras da maturidade. Ao mesmo tempo, quis identificar as ideias de Marx historicamente essenciais.
As três exposições da segunda parte me parecem menos orientadas no sentido de um objetivo definido. Apresentei o autor do ‘Traité de sociologie générale’ sem nenhum envolvimento pessoal. Pareto é um solitário, autor de um monumento sociológico a que a posteridade não soube ainda que lugar atribuir na história do pensamento.
Conservo por Max Weber a admiração que lhe devoto desde a juventude; ele nunca me irrita, enquanto até os argumentos convincentes de Durkheim me produzem uma sensação de mal-estar.
Uma última palavra: na conclusão da primeira parte, afirmo pertencer à escola dos sociólogos liberais, de Montesquieu, Tocqueville. Faço-o com uma certa ironia que escapou aos críticos deste livro. Contudo, parece útil acrescentar que nada devo à influência de Montesquieu ou de Tocqueville, cujas obras só estudei com seriedade nos últimos dez anos. Por outro lado, há trinta e cinco anos que leio e releio as obras de Marx. Minhas conclusões pertencem à escola inglesa, minha formação vem sobretudo da escola alemã.
Bibliografia:
ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. 7ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.