Equívocos da Filosofia Marxista – resumo do capítulo de As Etapas do Pensamento Sociológico, de Raymond Aron. Boa leitura!
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Para MARX, a filosofia clássica, que levou ao sistema de Hegel, chegou ao seu fim, porque HEGEL refletiu sobre o todo histórico e o todo da humanidade. A filosofia completou sua tarefa, que consiste em levar à consciência explícita as experiências da humanidade.
O homem, porém, apesar de tomar consciência, não realizou essa vocação. Essa vocação do homem que a história deve realizar para que a própria filosofia se realize, para Marx, diz respeito a conceitos como a universalidade, a totalidade ou a alienação.
O indivíduo tem uma situação dupla e contraditória. De um lado, como cidadão, o indivíduo participa do Estado, isto é, da universalidade. Mas ele só é cidadão ao votar. Fora dessa atividade com a qual realiza sua universalidade, o indivíduo pertence à sociedade civil e, enquanto membro da sociedade civil, está encerrado nas suas particularidades. É um trabalhador às ordens de um empresário, ou então um empresário separado da organização coletiva. Para que os indivíduos no trabalho pudessem participar da universalidade, seria necessário suprimir a propriedade privada dos meios de produção, que provoca a exploração dos trabalhadores pelos empresários e interdita a estes últimos o trabalho direto para a coletividade, já que trabalham visando ao lucro.
O segundo conceito é o do homem total. Para Marx, o homem da sociedade industrial moderna é um homem especializado e deixa de utilizar muitas aptidões e faculdades que poderiam se desenvolver. Nessa linha, o homem total seria aquele que não fosse especializado. Como é difícil conceber como uma sociedade poderia formar todos os seus membros em todas as profissões, procurou-se uma interpretação menos romântica. O homem total seria aquele que realiza autenticamente sua humanidade, que exerce as atividades que definem o homem. O homem é concebido essencialmente como um ser que trabalha. Se trabalha em condições desumanas, é desumanizado, porque deixa de cumprir a atividade que o constitui em condições adequadas.
Voltamos a encontrar aqui o conceito de alienação. A ideia é que, em certas circunstâncias, o homem se torna um estranho para si mesmo, isto é, não se reconhece mais na sua atividade e nas suas obras. No capitalismo, o homem é alienado e, para se realizar, precisa superar essa alienação.
A crítica da realidade econômica do capitalismo no pensamento de Marx era, na sua origem, uma critica filosófica e moral. Esses temas filosóficos, a universalização do indivíduo, o homem total, a alienação, orientam a análise sociológica das suas obras da maturidade. Para Marx, a análise da economia capitalista era a análise da alienação dos indivíduos e das coletividades, que perdiam o controle da sua própria existência num sistema sujeito a leis autônomas.
Por outro lado, a análise do devenir do capitalismo era, para Marx, a análise do devenir do homem e da natureza humana através da história. Esperava da sociedade pós-capitalista a realização da filosofia. Qual seria, no entanto, esse homem total que a revolução pós-capitalista deveria realizar?
Sobre isso, pode-se discutir, porque havia em Marx uma oscilação entre dois temas. De acordo com o primeiro deles, o homem realiza sua humanidade no trabalho e é a liberação do trabalho que marcará a humanização da sociedade. Mas em vários lugares aparece outra concepção segundo a qual o homem só realiza sua humanidade na medida em que reduz a duração da jornada de trabalho.
Podem-se combinar os dois temas, mas, filosoficamente, resta uma dificuldade: qual é a atividade essencial que define o próprio homem e que deve se desenvolver para que a sociedade permita a realização da filosofia? Se não se determina qual é essa atividade, corre-se o risco de adotar a concepção do homem total na sua acepção mais vaga. Por outro lado, é difícil imputar exclusivamente à propriedade privada dos meios de produção o fato de todos os homens não realizarem todas as suas aptidões. Como se pode conciliar a crítica da sociedade atual com a esperança de realização do homem total pela simples substituição de um modo de propriedade por outro? Aqui aparecem a grandeza e o equívoco da sociologia marxista. Pretende ser uma filosofia. Ela é, essencialmente, uma sociologia.
Mas, além dessas ideias, restam ainda muitos pontos obscuros ou equívocos que explicam a variedade das interpretações dadas ao pensamento de Marx.
Um desses equívocos, de ordem filosófica, está relacionado com a natureza da lei histórica. A interpretação histórica de Marx pressupõe um devenir inteligível de ordem supra-individual. Por meio da luta de classes e da contradição entre formas e relações de produção, o capitalismo destrói a si mesmo. Ora, essa visão geral da história pode ser interpretada de duas maneiras diferentes.
De acordo com uma interpretação objetivista, esta representação das contradições históricas que levam à destruição do capitalismo e ao surgimento de uma sociedade não-antagonista corresponderia ao que chamamos de grandes linhas da história. Admitindo essa interpretação, a destruição do capitalismo e o advento de uma sociedade não antagônica seriam fatos certos e conhecidos previamente, mas indeterminados quanto a sua data e a modalidade. A previsão de um acontecimento sem data e não especificado não se parece absolutamente com as leis das ciências naturais.
Há outra interpretação que chamaremos de dialética. Nesse caso, a visão marxista da história nasceria de uma forma de reciprocidade de ação entre, por um lado, o mundo histórico e a consciência que pensa esse mundo e, por outro, entre os diferentes setores da realidade histórica. Assim, poderemos compreender os acontecimentos tais como se realizaram, em seu caráter concreto. Contudo, uma interpretação dialética deixa sem resposta a questão sobre como determinar a interpretação global, total e verdadeira. Se todo sujeito histórico pensa a história em função da sua situação, por que a interpretação dos marxistas ou do proletariado é verdadeira? Por que é total?
Um segundo equívoco se relaciona com a natureza do que poderíamos chamar de imperativo revolucionário. Como no caso anterior, há duas interpretações possíveis que podemos resumir com a fórmula: Kant ou Hegel.
Os kantianos, minoritários, dizem: não se passa do fato para o valor, do julgamento sobre o real para o imperativo moral; portanto, não se pode justificar o socialismo pela interpretação da história tal como ela se desenrola. Marx analisou o capitalismo tal como ele é; desejar o socialismo diz respeito a uma decisão de ordem espiritual. Contudo, a maioria dos intérpretes de Marx preferiu permanecer na tradição do monismo. O sujeito que compreende a história está engajado na própria história. O socialismo, ou a sociedade não antagônica deve surgir necessariamente da sociedade antagônica atual porque o intérprete da história é levado a querer uma sociedade de outro tipo.
Além destas duas alternativas, a da visão objetiva das grandes linhas da história e a da interpretação dialética, Kant ou Hegel, há uma conciliação possível, que é a filosofia objetivista dialética. As teses essenciais desse materialismo dialético são as seguintes:
1) O pensamento dialético afirma que a lei do real é a lei da transformação. Não há um princípio eterno; as concepções humanas e morais se transformam de época para época.
2) O mundo real comporta uma progressão qualitativa que vai, no mundo humano, dos regimes sociais primitivos até o regime que marcará o fim da pré-história, isto é, o socialismo.
3) As transformações se realizam por meio de uma mudança brutal, revolucionária. Engels dá um exemplo: a água é líquida; se abaixarmos a temperatura até um certo ponto, o líquido se torna sólido. Essas transformações obedecem à lei da contradição e da negação da negação: o regime capitalista é a negação do regime de propriedade feudal; a propriedade pública do socialismo será a negação da negação, isto é, a negação da propriedade privada. Assim, o conjunto da história é a negação da propriedade coletiva inicial das sociedades indiferenciadas e arcaicas; o socialismo nega as classes sociais e os antagonismos para retornar a propriedade coletiva das sociedades primitivas, porém, num plano superior.
Na verdade, o vinculo entre a filosofia dialética da natureza e a essência do pensamento marxista não é evidente nem necessário. Logicamente, é possível ser discípulo de Marx em economia política e não ser materialista no sentido metafísico do termo. Historicamente, porém, estabeleceu-se uma espécie de síntese entre uma filosofia de tipo materialista e uma visão histórica.
Bibliografia:
ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.