Equívocos da Sociologia Marxista – resumo do capítulo de As Etapas do Pensamento Sociológico, de Raymond Aron. Boa leitura!
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A concepção do capitalismo e da história de Marx está associada à combinação dos conceitos de forças de produção, relações de produção, luta de classes, consciência de classe, infraestrutura e superestrutura. O emprego crítico e metodológico dessas noções, para compreender uma sociedade moderna, é perfeitamente legítimo. Contudo, o emprego crítico das categorias marxistas não implica uma interpretação dogmática do curso da história.
O pensamento de Marx não comporta dúvida. Acreditava que um regime histórico era definido por certas características principais, o estado das forças produtivas, a forma da propriedade e as relações dos trabalhadores entre si. Os diferentes tipos sociais são caracterizados por relações entre os trabalhadores associados. A escravidão foi um tipo social, o trabalho assalariado é um outro tipo. O essencial é a definição de um regime social a partir de um pequeno número de fatos considerados como decisivos.
A visão coerente de Marx é a de um desenvolvimento das forças produtivas que torna cada vez mais difícil manter as relações de produção capitalista e o funcionamento dos mecanismos desse regime, tornando a luta de classes cada vez mais impiedosa. Porém, a revolução não ocorreu onde as forças produtivas tinham atingido o maior desenvolvimento. Os fatos a partir dos quais Marx encontra a totalidade social e histórica foram dissociados pela história. O problema teórico provocado por tal dissociação pode ter duas soluções: a interpretação flexível, mantida por uma metodologia de interpretação sociológica e histórica aceitável para todos; e a interpretação dogmática, que mantém o esquema do devenir histórico concebido por Marx, numa situação que, sob certos aspectos, é totalmente diferente. Cabe perguntar se esta visão dogmática corresponde à sociologia de Marx.
Outro equívoco da sociologia marxista tem a ver com a análise e a discussão dos conceitos essenciais infraestrutura e superestrutura.
De modo geral, a infraestrutura é a economia, isto é, o conjunto do equipamento técnico de uma sociedade, e também a organização do trabalho. Mas o equipamento técnico de uma civilização é inseparável dos conhecimentos científicos. Ora, estes parecem pertencer ao domínio do saber, que deveria estar ligado à superestrutura. Isso mostra a dificuldade de separar realmente o que pertence, segundo a definição, a uma e a outra. Na qualidade de simples instrumentos de análise, esses dois conceitos podem ter uma utilização legítima. A objeção que se levanta só atinge a interpretação dogmática segundo a qual um dos dois termos determinaria o outro.
De modo comparável, não é fácil precisar a contradição existente entre as forças e as relações de produção. Segundo uma das versões mais simples desta dialética, num certo grau de desenvolvimento das forças de produção, o direito individual de propriedade representaria um entrave no progresso das forças de produção. Nesse caso, a contradição estaria na relação entre o desenvolvimento da técnica de produção e a manutenção do direito individual de propriedade.
Se considerarmos as grandes empresas modernas na França e nos Estados Unidos, pode-se dizer que, de fato, a amplitude das forças de produção tornou inviável a manutenção do direito individual de propriedade. As usinas da Renault não pertencem a ninguém, uma vez que pertencem ao Estado. Da mesma forma, a General Motors pertence a centenas de milhares de acionistas, que mantém a ficção jurídica da propriedade, mas não tem seus privilégios autênticos.
Pode-se dizer que Marx tinha razão quando mostrava a contradição existente entre o desenvolvimento das forças de produção e o direito individual de propriedade, já que, no capitalismo moderno das grandes sociedades por ações, o direito de propriedade, de certo modo, desapareceu. Por outro lado, se considerarmos que essas grandes sociedades são a própria essência do capitalismo, poderemos mostrar com igual facilidade que o desenvolvimento das forças produtivas não elimina o direito de propriedade, e que a contradição teórica entre forças e relações de produção não existe. O desenvolvimento das forças de produção exige o aparecimento de novas formas de relações de produção, que podem, porém, não ser contraditórias com respeito ao direito tradicional de propriedade. Em outras palavras, a contradição entre forças e relações de produção não está demonstrada.
A sociologia de Marx é uma sociologia da luta de classes. A sociedade atual é uma sociedade antagônica. A luta de classes é o motor da história, e leva a uma revolução que marcará o fim da pré-história e o surgimento de uma sociedade não-antagônica. Mas, o que é uma classe social?
Há uma passagem no manuscrito de O CAPITAL, no livro III, intitulado “As classes”. Marx escreve: “Os proprietários da simples força de trabalho, os proprietários do capital e os proprietários de terras, cujas fontes de renda são, respectivamente, o salário, o lucro e a renda, isto é, os assalariados, os capitalistas e os proprietários fundiários, constituem as três grandes classes da sociedade moderna, baseada no sistema de produção capitalista”. A distinção entre as classes se baseia na distinção da origem econômica das rendas: capital-lucro; terra-renda fundiária; trabalho-salário.
Pode-se dizer que uma classe social é um grupo que ocupa um lugar determinado no processo de produção. Pode-se concluir, por outro lado, que as relações de classe tendem a se simplificar à medida que o capitalismo se desenvolve. Se só existem duas fontes de renda (deixando de lado a renda fundiária, cuja importância diminui com a industrialização), existem duas grandes classes: o proletariado, constituído por aqueles que só possuem sua força de trabalho, e a burguesia capitalista, isto é, todos aqueles que se apropriam de uma parte da mais-valia. São grupos que tem verdadeiramente representações contraditórias do que deva ser a sociedade e que tem realmente um propósito político e histórico definido. Isso não exclui a existência de subgrupos, dentro de cada classe, ou a presença de grupos ainda não absorvidos pelos dois grandes atores do drama histórico. Mas, no curso da evolução histórica, esses grupos exteriores ou marginais, como os comerciantes, os pequenos burgueses, os sobreviventes da antiga estrutura da sociedade, serão obrigados a se unir aos proletários ou aos capitalistas.
Nessa teoria há pontos equívocos e discutíveis.
No ponto de partida da sua análise, Marx assemelha a expansão da burguesia à expansão do proletariado. A burguesia desenvolveu as forças de produção no seio da sociedade feudal. Da mesma maneira, o proletariado está em vias de desenvolver as forças de produção da sociedade capitalista. Esta aproximação é um erro. Os dois casos são radicalmente diferentes.
Quando a burguesia criava forças de produção no seio da sociedade feudal, era realmente uma classe social nova, formada dentro da antiga sociedade. Mas a burguesia, seja comerciante, seja industrial, era uma minoria privilegiada, que exercia funções socialmente indispensáveis. Opunha-se à classe dirigente feudal como uma aristocracia econômica se opõe a uma aristocracia militar. Para Marx, a Revolução Francesa constitui o momento em que a classe burguesa tomou o poder politico que estava nas mãos dos restos da classe feudal, politicamente dirigente.
Entretanto, na sociedade capitalista, o proletariado é a grande massa dos trabalhadores não-privilegiados. Não cria novas forças ou relações de produção dentro da sociedade capitalista; os operários são os agentes de execução de um sistema de produção dirigido pelos capitalistas ou pelos técnicos. Por isso, a comparação entre a expansão do proletariado e a expansão da burguesia é sociologicamente falsa. Para comparar a expansão do proletariado com a expansão da burguesia, é preciso confundir a minoria que dirige o partido político, e alega representar o proletariado, com o próprio proletariado. No caso da burguesia, são os burgueses os privilegiados, os que dirigem o comércio e a indústria, os que governam. Quando o proletariado faz sua revolução, são os homens que dizem representá-lo que dirigem as empresas comerciais e industriais, e que exercem o poder.
A ascensão do proletariado não pode ser assemelhada à ascensão da burguesia; aí está o erro central de toda a visão marxista da história. Marx quis definir de modo unívoco, pela classe que exerce o poder, um regime econômico, social e político. Ora, essa definição do regime é insuficiente, porque implica uma redução da politica à economia, ou do Estado à relação entre os grupos sociais.
Bibliografia:
ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.