Resumo de Montesquieu – Fatos e Valores. Capítulo de As Etapas do Pensamento Sociológico de Raymond Aron. Boa leitura!]
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A questão fundamental de toda sociologia histórica poderia ser formulada do seguinte modo: o sociólogo estaria condenado a observar a diversidade das instituições sem formular um juízo de valor sobre elas? Em segundo lugar, na medida em que constata uma diversidade de instituições, estaria ele obrigado a passar em revista essa diversidade sem integrá-la num sistema ou, ao contrário, ele poderia, para além dessa variedade, encontrar elementos comuns?
Para analisar esses problemas, será melhor tomar como ponto de partida uma noção central de O ESPÍRITO DAS LEIS, a saber, a própria noção de lei. O termo lei pode ter duas significações. Pode significar uma prescrição do legislador, uma ordem dada pela autoridade competente, que nos obriga a fazer isso ou a não fazer aquilo. Chamemos esse primeiro sentido de lei-preceito. Pode-se entender também por lei uma relação de causalidade entre um determinante e um efeito. Por exemplo, se afirmamos que a escravidão é uma consequência necessária de determinado clima, temos uma lei causal que estabelece uma relação constante entre um meio geográfico de um tipo determinado e uma instituição particular, a escravidão.
CHARLES-LOUIS DE SECONDAT, BARÃO DE MONTESQUIEU procura as leis causais que explicam as leis-preceitos. O espírito das leis é o conjunto das relações ente as leis-preceitos das diversas sociedades humanas e os fatores suscetíveis de influenciá-las ou de determiná-las. O Espírito das Leis é o conjunto das relações de causalidade que explicam as leis-preceitos.
Se o pensamento de Montesquieu se resumisse às fórmulas precedentes, sua interpretação seria fácil. As leis-preceitos constituiriam o objeto de estudo, e as relações de causalidade seriam a explicação dessas leis. Nessa hipótese, tudo seria bem simples. Montesquieu admitiria uma filosofia determinista das leis. Essa filosofia constataria a diversidade das legislações e a explicaria pela multiplicidade das influências que se exercem sobre as coletividades humanas. A filosofia do determinismo se associaria à filosofia da diversidade indefinida das formas de existência coletiva. Montesquieu se limitaria a extrair do estudo causal suas consequências pragmáticas, pressupondo os objetivos do legislador.
Pessoalmente, não acredito que esta interpretação faça justiça a Montesquieu. Se fôssemos até as últimas consequências desse tipo de filosofia, não seria possível dizer nada de universalmente válido para apreciar os méritos comparados da república ou do despotismo. Certamente Montesquieu deseja ao mesmo tempo explicar a diversidade das instituições e conservar o direito de julgar essa diversidade.
Qual é, então, a filosofia para a qual ele tende, de modo mais ou menos confuso?
Montesquieu desejaria, de um lado, explicar de modo causal a diversidade das leis positivas e, em segundo lugar, desejaria dispor de critérios válidos e universais para fundamentar os juízos de valor, ou morais, relativos às instituições consideradas. Finalmente, as instituições que condena de modo radical – a escravidão ou o despotismo – são, a seus olhos, contrárias às características do homem enquanto homem. São instituições que contradizem as aspirações naturais do homem.
Como solução, Montesquieu sugere uma espécie de hierarquia dos seres, da natureza inorgânica até o homem: “Todos os seres têm suas leis; a Divindade tem suas leis; o mundo material tem suas leis; as inteligências superiores ao homem têm suas leis; os animais têm suas leis; o homem te suas leis” (O. C., pg 232). Quando se trata da matéria, essas leis são pura e simplesmente leis causais; essas são leis necessárias, que não podem ser violadas. Quando chegamos à vida, as leis são também leis causais, embora e natureza mais complexa. Finalmente, quando chegamos ao homem, essas leis, nos diz Montesquieu, impondo-se a um ser inteligente, podem ser violadas, porque a liberdade acompanha a inteligência. As leis relativas à conduta humana já não são do tipo de causalidade necessária.
Em outros termos, a filosofia que permite a combinação da explicação científica das leis positivas com a manutenção de imperativos universalmente válidos é uma filosofia da hierarquia dos seres, que levaria a uma diversidade de leis, hierarquia que começa com a natureza inorgânica, comandada por leis invariáveis, e vai até o homem, submetido a leis racionais que ele é capaz de violar. Daí a fórmula que sempre pareceu paradoxal: “É preciso que o mundo inteligente seja tão bem governado quanto o mundo físico porque, embora o primeiro tenha também leis que, por sua natureza, são invariáveis, não as segue constantemente, como o mundo físico segue as suas próprias. A razão está em que os seres inteligentes particulares são limitados por sua natureza, e em consequência estão sujeitos ao erro. Por outro lado, é próprio de sua natureza agirem por si mesmos” (E. L. p. 233).
Montesquieu estabelece uma diferença entre as leis positivas promulgadas por um legislador, as relações causais que se encontram na história, como na natureza, e finalmente as leis universalmente válidas, associadas de modo intrínseco à razão. O que ele pretende é simplesmente encontrar uma filosofia que lhe permita combinar a explicação determinista das particularidades sociais com julgamentos morais e filosóficos que sejam universalmente válidos.
O segundo aspecto da filosofia de Montesquieu, depois da hierarquia dos seres, é constituído pelo capítulo 2 do livro I, no qual ele especifica o que seja o homem natural, isto é, sua concepção do homem enquanto homem, anterior à sociedade. Nesse capítulo, Montesquieu pretende refutar a concepção da natureza em HOBBES.
Montesquieu quer demonstrar que, em si mesmo, o homem não é belicoso. Ele quer refutar Hobbes porque este, considerando que o homem se acha, no estado natural, em hostilidade para com seus semelhantes, justifica o poder absoluto, que é o único capaz de impor a paz e dar segurança a uma espécie belicosa. Para Montesquieu, o homem não é intrinsecamente inimigo do homem, e a guerra é um fenômeno mais social do que humano. Se a guerra e a desigualdade estão ligadas à essência da sociedade, e não à essência do homem, o objetivo da política não será eliminar a guerra e a desigualdade, inseparáveis da vida coletiva, mas simplesmente atenuá-las ou moderá-las. Se a guerra é humana, pode-se sonhar com a paz absoluta. Se é social, apoiamos simplesmente o ideal da moderação.
Comparando as ideias de Montesquieu com as de Jean-Jacques ROUSSEAU, observa-se, também, uma oposição. Rousseau se refere a um estado de natureza, concebido pela razão humana, que serve de critério à sociedade. Esse critério o leva a uma concepção da soberania absoluta do povo. Nosso autor se limita a constatar que as desigualdades provêm da sociedade, o que não o leva a concluir que é preciso retornar a uma igualdade natural, mas que, na medida do possível, é preciso atenuar as desigualdades, que têm raiz na própria sociedade.
A concepção de estado da natureza de Montesquieu não só é reveladora do conjunto da sua filosofia política, mas está também na origem dos livros IX e X, consagrados ao direito das gentes:
“O direito das gentes se fundamenta naturalmente no princípio de que as diversas nações devem fazer, durante a paz, o maior bem umas às outras e, na guerra, o menos mal possível, sem prejudicar seus interesses verdadeiros. O objetivo da guerra é a vitória; o da vitória, a conquista; o da conquista, a conservação. Deste princípio, e do precedente, devem derivar todas as leis que compõem o direito das gentes” (E. L. cap. 3, p. 237).
Esse texto mostra que há em O Espírito das Leis não somente explicação científica causal das leis positivas, mas também a análise das leis que presidem as relações entre as coletividades, em função do objetivo atribuído por Montesquieu ao direito das gentes. O que significa, em outros termos, que o fim para o qual se encaminham as coletividades pode ser determinado pela análise racional.
Bibliografia:
ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. 7ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.