Um dos mais audaciosos ataques de BURKE à Revolução encontra-se no seu tratamento do preconceito em Reflections:
“Sou suficientemente corajoso para confessar que nesta era esclarecida somos geralmente homens de sentimentos espontâneos; que, em vez de deitarmos fora todos os nossos velhos preconceitos, os acalentamos numa medida muito considerável… e quanto mais generalizados forem, mais nós os acalentamos”.
Para Burke, “preconceito” é a essência de toda uma maneira de conhecer que ele via em contraste total com as maneiras de pensar que floresceram no Iluminismo francês e depois, momentaneamente, na Revolução. Essas maneiras encareciam a razão pura e arvoravam a luz da busca individual da verdade contra o que estava consagrado pela tradição e a experiência. Para os revolucionários bastava declararem uma coisa “Contra a natureza e contrária à razão” para a banirem para sempre do regime político.
Mas, opunha Burke, os seres humanos requerem, para sua educação e progresso, um gênero diferente de raciocínio, que derive de sentimentos, emoções e longa experiência, assim como da lógica pura. O preconceito “é de pronta aplicação numa emergência; compromete previamente o espírito num caminho estável de sabedoria e virtude e não deixa o homem hesitante no momento da decisão, cético, embaraçado e indeciso”.
Para Burke, o preconceito é um resumo, na mente individual, da autoridade e da sabedoria contidas na tradição. Este era o tipo de sabedoria que os filósofos da lei natural e especialmente os philosophes se compraziam em descrever como mera superstição.
Os ataques de Burke ao racionalismo puro através dos elogios do inconsciente, do pré-racional e do tradicional, encontraram apoio em grande parte do pensamento do século XIX. Ironicamente, a ideia de Burke sobre o preconceito alimentou o crescente ideal democrático da vontade popular, pois que a ideia de Burke era, acima de tudo, uma referência ao tipo de conhecimento comum entre os indivíduos de uma nação, e não privilégio especial de uma elite intelectual.
Não foram muitos os que depois de Burke usaram o termo “preconceito”, mas na sua base constituiu-se um legado durável. TOCQUEVILLE estava claramente a referir-se ao uso que Burke fez de “preconceito” quando escreveu: “Se cada um tentasse formar todas as suas opiniões próprias e procurar a verdade por caminhos isolados só descobertos por si, seguir-se-ia que nenhum número considerável de pessoas se uniria jamais numa crença comum”.
No apelo conservador ao preconceito no comportamento humano está em jogo todo um tipo de conhecimento. É a espécie de conhecimento que William James descreveu como “conhecimento de” em contraste com “conhecimento acerca”. O primeiro é o conhecimento que adquirimos simplesmente através da experiência. A sua essência é o aspecto prático. O segundo tipo de conhecimento, aduzia James, é o que adquirimos dos livros, da aprendizagem acerca de qualquer coisa que pode ser apresentada sob a forma de princípio abstrato ou geral. Qualquer imaginação viva pode propor princípios reivindicativos ou leis de governo, mas só alguém rico em “conhecimentos de” pode proporcionar os meios práticos para conduzir, ou de qualquer modo participar, num verdadeiro governo.
É esta a distinção entre tipos de conhecimento que está por detrás da crítica conservadora a todo o utopismo e a uma boa porção da reforma política. O utopista e o reformista – argumenta o conservador – podem bem ser ricos em princípios e ideais mas gravemente pobres no “saber como” que esperamos de todos os operários, desde o estivador até ao cirurgião. Por causa da devoção habitual a regras, princípios e abstrações, existe uma tendência inevitável para lidar com as massas de povo em vez do povo como na verdade o vemos, como pais, interlocutores, trabalhadores, consumidores e eleitores .
Michael Oakeshott pôs muito bem o assunto num notável ensaio sobre o “racionalismo na política”. Oakeshott faz essencialmente a mesma distinção entre tipos de conhecimento que fez James, usando as palavras “conhecimento da técnica” para um e “conhecimento prático” para outro. O primeiro é o que pode ser adquirido através da inteligência, através dos livros ou das aulas e da habilidade de raciocínio. É grande em regras, prescrições e generalizações. O segundo limita-se estritamente à experiência, à execução do que se sabe ser parte inalienável do espírito e personalidade de cada um. Oakeshott argumenta que o que nós chamamos racionalismo político no pensamento moderno ocidental é o somatório e a glorificação do conhecimento técnico.
Por detrás de cada utopia, de cada generalização importante sobre da “natureza do homem”, de toda a constituição urgente para um novo Estado ou associação de qualquer espécie e de cada projeto de reforma de grande alcance, na História moderna da Europa, lá está a política do Racionalismo na formulação de Oakeshott. Além disso, “O Racionalismo é a afirmação de que o que chamamos de conhecimento prático não é de todo conhecimento; a afirmação de que, propriamente falando, não existe conhecimento que não seja conhecimento técnico”. Ao longo da História, portanto, onde quer que o espírito racionalista tenha florescido, tem havido o sonho ou de uma única grande inteligência ou de uma pequena elite de inteligências para governarem diretamente e de modo compreensível o povo, concebido como uma massa homogênea, e para se livrarem de uma vez por todas dos governos baseados meramente nos usos e costumes, no hábito, no costume e tradição e nos grupos representativos, nas comissões semipúblicas e outros organismos, nas “burocracrias” judiciais e outras restrições à pura razão dedutiva.
Burke foi o primeiro a compreender que a mentalidade do racionalista político se inclina naturalmente para uma espécie de imperialismo interno: “O imperialismo democrático”, como Irving Babbitt lhe chama na sua obra Leadership and Democracy. Isto é, dado que a razão individual se arroga a capacidade de dirigir diretamente o povo, aumentar o âmbito do que a razão está dirigindo – desde o puramento político e legal até ao econômico, social, moral e espiritual – constitui um passo em frente fácil e tentador. Foi tendo em mente os grupos intelectuais liberais e socialistas que Babbitt escreveu: “Nenhum movimento ilustra mais claramente do que o movimento supostamente democrático a maneira como a vontade de minorias altamente organizadas e decididas pode prevalecer sobre a vontade das massas inertes e desorganizadas”.
Do ponto de vista conservador, somente o preconceito, na opinião de Burke, pode manter os cidadãos unidos, ao contrário da tirania que o racionalismo governamental às vezes impõe ao povo.
Burke e os conservadores em geral compreenderam que quase toda a vontade de resistir – que vulgarmente se diz nascer do conhecimento dos direitos naturais ou dos instintos natos de liberdade – resulta, pelo contrário, dos preconceitos lentamente implantados nas mentes de um povo: preconceitos sobre religião, propriedade, autonomia nacional e participação prolongada na ordem social. Estes, e não os direitos abstratos, é que são as forças motivadoras nas lutas dos povos pela liberdade.
Bibliografia
NISBET, Robert. O conservadorismo. Lisboa: Editorial Estampa, 1987.