A Casa & A Rua: Espaço (Casa, Rua e Outro Mundo: o Caso do Brasil)

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Resumo de A Casa e a Rua – Espaço (Casa, Rua e Outro Mundo: o Caso do Brasil), primeiro capítulo da obra de Roberto DaMatta. Boa leitura!

A sociedade brasileira se caracteriza por ter muitos espaços e tempos convivendo simultaneamente. Não há sistema social onde não exista uma noção de tempo e outra de espaço. Em muitas sociedades, os dois conceitos se confundem e operam dentro de uma gradação complexa.

Entre os nuer (grupo tribal do Sudão), o tempo não é individualizado, como é conosco. As unidades de tempo só são visíveis como tal porque estão ligadas a atividades socialmente bem marcadas e que ocorrem em espaços distintos. O ano nuer se divide em dois grandes períodos: a cheia do rio e a vazante, vividos, respectivamente, em aldeias e acampamentos. Realizam cerimoniais no período entre esses dois momentos, como que ligando espaços e atividades que salientam duas durações diferenciadas – não se pode falar de espaço sem falar de tempo. É possível que apenas nos países ocidentais, que realizaram a “revolução puritana” e adotaram integralmente o capitalismo e sua lógica cultural, o tempo e o espaço tenham medidas únicas, paralelas, coordenadas num sistema também oficial e universal de medidas.

Cada sociedade tem uma gramática de espaços e temporalidades para poder existir como um todo articulado. Isso depende de atividades que se ordenam em oposições diferenciadas, permitindo lembranças ou memórias diferentes em qualidade, sensibilidade e forma de organização. É assim que cada sociedade ordena e separa o conjunto de vivências que é socialmente provado – como os mitos e narrativas – daquelas experiências que devem ser esquecidas, mas que exercem pressão sobre o sistema cultural.

No caso de festas, rituais, cerimônias há uma mudança no modo de conceber e medir o tempo e espaço. Nelas, a ideia do tempo muda, bem como as unidades, o que revela a sua natureza social e capacidade de variação. Tais mudanças correspondem a uma dinâmica dos grupos sociais que estão implicadas à cada forma de temporalidade.

As rotinas diárias preservam o tempo na sua duração “normal”, pois os espaços são equacionados a atividades específicas: não dormimos na rua, por exemplo. A festa promove o deslocamento das atividades em relação aos seus “espaços normais”, o que permite a alteração da sensação de tempo, acelerando-o ou atrasando-o. Do mesmo modo, os rituais permitem a sensação de uma “volta” do tempo, porque prescrevem um lugar para cada coisa, o que congela o tempo. É isso que permite controlar o tempo e torna o espaço mais significativo, uma vez que é ordenado por suas relações com os grupos que se combinam e se reformulam de acordo com a lógica social de cada sociedade.

Há espaços eternos e transitórios, legais e mágicos individualizados e coletivos. O que diz respeito ao poder político é, para nós, conotado como duradouro. Praças e adros, que são espaços abertos e necessariamente públicos, servem de foco para a relação estrutural entre o individuo (líder, chefe de Igreja ou governo) e a coletividade (povo) que lhe é oposta e complementar. Esses espaços são marcados por monumentos, palácios, tudo aquilo que pode emoldurar a vida social num sistema de valores e poder. Há também espaços transitórios e problemáticos relacionados ao paradoxo, conflito ou à contradição, como regiões pobres ou o meretrício – que ficam em regiões periféricas ou escondidas são vistas como locais de transição: “zona”, “brejo”, etc.

Na sociedade brasileira, há um sistema com pelo menos três perspectivas complementares entre si. A casa, a rua e o outro mundo, que envolvem discursos e comportamentos distintos. São esferas de significação social que, além de separar contextos, contém visão de mundo e éticas particulares que constituem a própria realidade e normalizam o comportamento por meio de perspectivas próprias. O comportamento esperado é diferenciado de acordo com o ponto de vista de cada uma dessas esferas de significação. Isto faz com que a realidade seja sempre vista como parcial e incompleta.

Assim, qualquer evento pode ser interpretado por meio de código da casa e da família (avesso à mudança e à história, à economia, ao individualismo e ao progresso), pelo código da rua (aberto ao legalismo jurídico, ao mercado, à história linear, e ao progresso individualista) e por um código do outro mundo (a renúncia do mundo com suas dores e ilusões e, assim fazendo, tenta sintetizar os outros dois). Na prática um desses códigos pode ter hegemonia sobre os outros, de acordo com a categoria social.

Na nossa sociedade, as camadas dominadas tenderiam para a linguagem da casa, moralizante, onde as relações sociais fazem parte de uma ordem cósmica dada por Deus. Os segmentos dominantes tendem a tomar o código da rua, impessoal as leis são os pontos focais. Conceitos e relações são reificados numa visão onde nada poderá mudar de lugar. A síntese seria a perspectiva do “outro mundo”, que relaciona a igualdade superficial dada em códigos jurídicos com um esqueleto hierárquico da prática social, recusando-se a tomar um desses códigos como exclusivo.

Por tudo isso, não se pode misturar o espaço da casa com o espaço da rua sem criar confusão. Aprendemos muito cedo que certas coisas só podem ser feitas em casa e, mesmo assim, dentro de algum dos seus espaços, que dizem também respeito a divisões relacionadas ao sexo e à idade – como na disposição das pessoas à mesa na refeição.

A gramática social da casa brasileira faz uso de expressões relacionais que exprimem a ligação dramática da casa com a rua. O simbolismo da casa é extenso em nossa sociedade. De casa vem “casamento”, “casadouro” e “casal”, expressões que denotam um ato relacional, coerente com o espaço da morada. Por isso, “ser posto para fora de casa” significa estar privado de um espaço marcado pela familiaridade e hospitalidade. Do mesmo modo, “estar em casa” fala de situações onde as relações são harmoniosas e disputas devem ser evitadas, As duas áreas são “inimigas”. É uma oposição dinâmica e relativa, posto que há espaços na rua, que podem ser fechados ou apropriados por uma categoria social, tornam-se sua “casa”.

É na rua em que devem viver os malandros, pilantras, marginais. A rua é a zona onde cada um deve zelar por si. Isso revela como o espaço público é perigoso e tudo que o representa, negativo. É um ritual muito importante a primeira vez que alguém vai à rua sozinho, momento dramatizado por conselhos e recomendações. A passagem da casa para rua e da rua para a casa equivale à ligação de duas temporalidades, não só de dois espaços. O primeiro é o tempo da casa, da duração cíclica que se reproduz toda vez que alguém entra ou sai da casa, que se refaz a cada reunião nas festas onde se celebram as próprias relações sociais. O segundo é o tempo linear, temporalidade impessoal e desordenada, que não permite a reversibilidade.

O ritual brasileiro é uma modalidade de relacionar conjuntos separados e complementares de um mesmo sistema social. Seriam as festas discursos visando uma coerência numa sociedade cuja pedra de toque é a heterogeneidade? Se for assim, no em sistemas como o nosso, os rituais serviriam como mecanismo que visa à unificação geral do sistema e teria um caráter inclusivo, que permitem o sistema ser visto como uma totalidade. Seriam espaços para criar uma ética única em sistemas divididos por éticas dúplices ou tríplices.

Bibliografia:

DAMATTA, R. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

Rolf Amaro

Nascido em 83, formado em Ciências Sociais, músico, sempre ando com um livro na mão. E a Ana,minha senhora, na outra.

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