Resumo de A Casa e a Rua – Mulher (Dona Flor e Seus Dois Maridos: Um Romance Relacional), terceiro capítulo da obra de Roberto DaMatta. Boa leitura!
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Para interpretar a sociedade brasileira de um ponto de vista sociológico, analisei o carnaval brasileiro, momentos em que se celebrava o equilíbrio e a ordem e, também, os rituais religiosos. O resultado foi um triângulo ritual, três momentos que seriam modos pelos quais o universo brasileiro poderia ser percebido e dramatizado pelos brasileiros. São éticas simultâneas e distintas, pois carnaval, rituais da religião e ritos cívicos apresentam uma equivalência entre si no cotidiano brasileiro.
O “triângulo ritual” aparece como algo inesperado, pois, ao seu lado, corre um conjunto de interpretações “oficiais” do Brasil, marcadas pelo dualismo: litoral/interior; preto/branco; Brasil moderno/ Brasil arcaico; quando, na verdade, as vertentes interpretativas mais duradouras do cenário social brasileiro falavam (e ainda falam) em três elementos.
Tomemos o Brasil escravista como exemplo. A sociedade se achava dividida em senhores e escravos, mas a realidade brasileira permitia estabelecer diferenciações dentro de todas as camadas. A mediação entre senhores e escravos não é feita somente por meio de um cálculo econômico e jurídico. Esse cálculo sofre as interferências de um sistema de relações que, sendo reconhecidas num nível moral e social, permitem criar categorias intermediárias que têm peso e capacidade de determinação social. São intermediações que permitem o exótico; pois não abandonamos o passado e conseguimos abraçar com todas as nossas forças o futuro. Assim conseguimos ser liberais e manter nossos escravos. Sem introduzir a perspectiva que permite estudar a relação como um elemento estrutural, não se pode penetrar na razão profunda da identidade nacional a não ser para vê-la como uma configuração intrigante, confusa e errada. É com esse quadro em mente que desejo investigar a história de Dona Flor e seus dois maridos.
Para analisar a obra de Jorge Amado, servem como ponto de partida as palavras de Bakhtin, quando diz que, no carnaval, as distâncias são eliminadas porque o mundo está de cabeça para baixo e a sociedade perde os seus centros de poder e hierarquização. O que se descobre no modelo da carnavalização é a formação de triângulos, de pessoas, categorias e ações sociais que normalmente estariam soterradas sob o peso da moralidade sustentada pelo Estado.
Em termos da trajetória de isso pode ser esclarecedor. A partir de Gabriela Cravo e Canela e já neste livro, é como se Jorge Amado tivesse decidido ver a sociedade como um sistema de ações onde existem homens, projetos e movimentações, os fantasmas dos mortos, dos hábitos e leis. Antes de termos uma luta entre “direita” e “esquerda”, temos agora uma disputa entre os que “estão embaixo” (os heróis de Amado) e os que “estão em cima”. Mas todos vivem num mundo onde as relações assumem um primado social crítico.
Parte do drama de Gabriela é que ela vive a ambiguidade e a relação conjugal de modo negativo e prefere a solidão como base para resolver seus dilemas. Mas, no caso de Dona Flor, não há recusa do ambíguo; pelo contrário, há uma aceitação consciente de dois homens diferentes que formam um triângulo social.
A história de Dona Flor e Seus Dois Maridos pode ser apresentada em quatro momentos distintos. O primeiro é a viuvez de Flor, quando Amado define a personalidade do marido como malandro e irresponsável, complementada pelas recordações de Dona Flor, para quem Vadinho é um modelo de liberdade. No final deste episódio o autor introduz algumas reflexões sobre o caráter ambíguo do herói: quem era Vadinho? Quais as suas exatas proporções? Descobre-se, então, outros triângulos, agora formados pela mãe de Dona Flor, Dona Rozilda, e suas filhas. Temos que Dona Rozilda é uma mulher oposta a Dona Flor. É autoritária, mesquinha, inconformada com o fato de que suas duas filhas acabaram casando com homens pobres e sem nome de família. Mas sua oposição a Vadinho é ainda mais marcada porque ele a havia enganado juntamente com seu amigo Mirandão, outro malandro.
O segundo momento do livro é quando Dona Flor resolve voltar aos amigos e à rua, onde existe movimento e novidade, surpresa e excitação. O terceiro momento apresenta o namoro e o casamento de Dona Flor com seu segundo marido, Dr. Teodoro Madureira, farmacêutico e homem regular, cerimonioso, formado, sério em ações e intenções. Se na união com Vadinho tudo podia ser misturado e ambíguo (ex.:Vadinho = rua/Flor = casa; Vadinho = irresponsável/Flor = responsável etc.), com o Dr. Teodoro a união é muito mais bem definida e mais igualitária. Nesta passagem do livro o autor intervém para dizer ao leitor que a vida acabou por transformar-se em paulificante rotina. D. Flor se isola novamente porque começa a pensar em Vadinho e a desejá-lo.
É assim que acabamos entrando no triângulo definitivo da história. O quarto e último momento do livro surge com a presença de Vadinho na alcova de Dona Flor, e ela decide tê-lo a seu lado não importando as implicações morais.
Aqui há outra surpresa. É que em Dona Flor o ponto de vista das relações com os dois amantes é feminino. Não é o homem quem vai articular as amantes sensuais com as esposas carolas que vivem dentro de casa. Mas é a própria Flor quem deverá articular positivamente o espírito de Vadinho (que conduz à liberdade, aos amigos, às escolhas e a criatividade) com o corpo do Dr. Teodoro, que remete à ordem, ao planejamento, às leis e às determinações. Aqui o que vemos é o ambíguo na face positiva, sendo capaz de reunir desejo e lei, liberdade e controle, sexo e casamento, descoberta e rotina, relações pessoais e leis universais, vida e morte. Esta é a ideologia relacional de um romance e uma apresentação provocadora do ambíguo como uma relação assumida e até mesmo desejável.
A riqueza sociológica deste modelo torna é possível alinhar alguns temas para um melhor entendimento da sociedade brasileira. O primeiro é que o estudo das relações permite ultrapassar a visão tradicional da identidade nacional como algo determinado por um elemento ou unidade exclusivo.
O Brasil não é nem o país do carnaval, nem a pátria do “Homem Cordial”, nem o território da violência, tampouco, a sociedade feita de feudalismo e desordens administrativas. Tudo indica que fazemos como fez Dona Flor, buscando juntar sistematicamente esses polos. Nessa perspectiva, não teríamos uma essência brasileira, mas uma configuração onde se combinou legalismo formalista e centralizador com relações pessoais instrumentalizadas e imperativas. Quanto mais se implementa um desses polos, mais o outro é ativado porque não foi jamais cortado o elo entre essas vertentes. Assim, a lei sempre foi vista como o antídoto contra o nepotismo e o paternalismo, mas esses modos de organização também são acionados como proteção contra leis repressivas a serviço de algum grupo que está no poder. Essa circularidade e essa oscilação é que demonstram as relações entre essas duas vertentes do mundo social brasileiro. É isso que talvez seja o traço distintivo desses sistemas.
Disse uma vez uma americana, que para se falar o Brasil de modo global, utiliza-se da imagem de uma mulher (Dona Flor, Gabriela, Capitu). O paradigma brasileiro é precisamente uma mulher porque o feminino assume um aspecto relacional básico na estrutura ideológica brasileira como ente mediador por excelência. As mulheres são mediatrizes (e meretrizes = mediadoras) no Brasil. Ligam o interno (o ventre, as matérias-primas da vida que sustentam a vida: alimentos em estado bruto) com o externo. Como fez Nossa Senhora ao conciliar o humano com o divino, traço que – diga-se de passagem – está presente também nesta Dona Flor, que faz uma ponte entre o morto idealizado e o vivo concreto.
Caberia, finalmente, reafirmar uma posição no que diz respeito à obra de Jorge Amado e às teorias do Brasil nela contidas. É impressionante que nenhum crítico tenha percebido essa “guinada” do autor como um modo de poder enfrentar os temas não oficiais da sociedade brasileira. Daí serem abundantes, a partir de Gabriela, a presença do “outro mundo” e da mulher em suas obras. Já não se fala mais em formalismos legais, ou em ideais políticos como módulos motivadores da ação dos personagens.
O problema sociológico será atinar para a verdade parcial de Dona Flor – fazer com que esse espírito de Vadinho, malandro, generoso, alegre e criativo possa ser trazido à luz do dia na construção de um projeto político. E assim fazendo, realizar afinal a síntese positiva das leis com os amigos. E não temer mais os amigos por causa das leis e nem descumprir as leis obedecendo à vontade imperiosa dos amigos. Essa talvez seja a mensagem de Dona Flor, mulher e povo, que conseguiu finalmente casar-se tão bem com a ordem e o progresso.
Bibliografia:
DAMATTA, R. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.