Resumo de Fronteiras da Europa – capítulo 1 de Raízes do Brasil, livro de Sérgio Buarque de Holanda. Boa leitura!
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O fato dominante e mais rico em consequências nas origens da sociedade brasileira é a tentativa de implantação da cultura europeia em um território extenso e bastante diferente no que se refere às condições naturais. A civilização brasileira e suas formas de convívio, instituições, ideias parecem participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem.
É significativo termos recebido a herança de uma nação ibérica – um dos territórios-ponte pelos quais a Europa se comunica com os outros mundos. É uma zona de transição não tão carregada de “europeísmo”, o que fez com que se desenvolvesse uma sociedade quase à margem das outras nações europeias.
Uma característica que é peculiar à península Ibérica é a cultura da personalidade. Portugueses e espanhóis devem muito da sua originalidade à importância que atribuem à pessoa e sua autonomia. Para eles, o valor de um homem está ligado a ele não depender de ninguém, a ser autossuficiente.
A singular fragilidade das formas de organização, de associações que impliquem solidariedade e ordenação entre os povos ibéricos encontra nessa particularidade sua origem. A falta de coesão em nossa vida social não é, portanto, um fenômeno moderno, tampouco representa a ausência de uma ordem que mude tal cenário. As épocas tradicionalistas foram possíveis porque eram atuais. Na idade média, o mundo era organizado segundo leis eternas indiscutíveis, impostas pelo supremo ordenador, que diferenciava até os anjos de acordo com o grau de beatitude. A hierarquia do pensamento subordinava-se a uma hierarquia de conceitos que ordenavam a vida social. O próprio princípio de hierarquia nunca teve força entre nós. Bem como os privilégios hereditários, que não precisaram ser abolidos como nas terras onde prosperou o feudalismo. O prestígio pessoal nos é mais característico – mais vale a eminência própria do que a herdada.
As nações ibéricas podem se considerar pioneiras da mentalidade moderna, uma vez que a separação das classes sociais, nítidas em outros países, era quase inexistente entre elas. A nobreza lusitana não era uma aristocracia fechada. A generalização dos mesmos nomes a pessoas de diversas condições sempre ocorreu na sociedade portuguesa, uma vez que era constante a troca de indivíduos, de uns que se ilustram, de outros que voltam à massa popular donde haviam saído. Havia homens com títulos de nobreza (filhos d’algo) em todas as profissões, desde oficiais industriais até arrendatários de bens rústicos. Tal honra era negada enquanto o indivíduo vivesse de trabalhos mecânicos. A comida do povo não se distinguia muito da dos nobres, o que permitia uma proximidade que tornava não raro tanto comer com os populares como a entrega da criação de seus filhos aos populares, que permitia a esses últimos desfrutar de privilégios e isenções.
As peculiaridades dos povos ibéricos estão relacionadas à sua notável capacidade de adaptação a novas formas de existência. Apesar de inovadora, a formação de unidades políticas e econômicas modernas não implicou na substituição de hábitos de vida tradicionais. Em Portugal, a ascensão do povo dos mesteres e dos mercadores citadinos não encontrou grandes barreiras. A burguesia mercantil procurou assimilar princípios das antigas classes dirigentes e guiar-se pela tradição, em vez de instituir uma nova escala de valores ou adotar um novo modo de agir e pensar.
O gosto pela vida palaciana, por títulos e honrarias era comum a burgueses e camponeses, já que a força do título depende das forças e capacidades do indivíduo. Essa mentalidade explica porque teorias que negam o livre-arbítrio, mérito e responsabilidade individual, foram sempre encaradas com antipatia pelos espanhóis e portugueses. Ela é o grande obstáculo ao espírito de organização espontânea, característico de protestantes, sobretudo calvinistas.
Um fato importante da psicologia desses povos é a invencível repulsa a toda moral baseada no culto ao trabalho. A ação sobre as coisas, sobre o universo material, implica na submissão e busca do aperfeiçoamento de um objeto exterior ao homem; e, também, na aceitação de uma lei estranha ao indivíduo que não é exigida por Deus nem aumenta a dignidade pessoal, ao contrário, a prejudica.
A essa carência de moral do trabalho corresponde uma reduzida capacidade de organização social. A solidariedade, na península ibérica, vai existir somente onde há vinculação de sentimentos mais do que relações de interesse – no recinto doméstico ou entre amigos.
Como alternativa à exaltação extrema da personalidade, a essa paixão que não tolera compromissos só pode haver uma alternativa: a renúncia a essa mesma personalidade em vista de um bem maior. Por isso a obediência – cega, diferente da lealdade – aparece algumas vezes como virtude suprema; constitui o único princípio político verdadeiramente forte. A vontade de mandar e a disposição para cumprir ordens são-lhes igualmente peculiares. Não existe aqui outra sorte de disciplina perfeitamente concebível, além da que se funde na excessiva centralização do poder e na obediência. A instabilidade constante da vida social brasileira deve muito ao declínio do prestígio da obediência como princípio disciplinar e a subsequente busca por um novo modelo que combine com essas terras. Isso porque de Portugal e Espanha veio a nossa atual cultura, o resto foi matéria que se sujeitou mal ou bem a essa forma.
Bibliografia:
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.