Resumo de Herança Rural – capítulo 3 de Raízes do Brasil, livro de Sérgio Buarque de Holanda. Boa leitura!
…
Toda a estrutura da nossa sociedade colonial teve sua base fora dos meios urbanos. Os portugueses instauraram aqui uma civilização de raízes rurais. As cidades eram simples dependências das propriedades rústicas, e isso durou essencialmente até a abolição.
Na monarquia, a política era monopolizada por fazendeiros escravocratas e pelos filhos educados nas profissões liberais: elegiam seus candidatos, dominavam os parlamentares, ministérios e posições de mando em geral, o que contribuiu para a estabilidade das instituições. O domínio era tão estável que permitiu que inclinações antitradicionalistas fossem defendidas por antigos senhores e movimentos liberais importantes encontrassem espaço.
As facções políticas são constituídas à semelhança da família patriarcal, onde os vínculos biológicos, além da famulagem e dos agregados de toda sorte, predominam sobre as demais considerações, os membros se associam uns aos outros por sentimentos e deveres em vez de ser por interesses ou ideias. Nos domínios rurais, a autoridade do proprietário de terras jamais sofria réplica. O engenho era um organismo completo que, não raro, era autossuficiente. Tinha capela para as missas, escola, alimentação, serraria para o mobiliário e madeira para as casas.
Na esfera doméstica, o princípio de autoridade se mostrava menos exposto às forças corrosivas na sociedade colonial. Representando o único setor onde a autoridade é indisputada, a família colonial fornecia a ideia mais normal do poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre os homens. Isso fez com que sentimentos próprios à comunidade doméstica, particularista e antipolítica, predominassem em toda vida social – o privado invadindo o público, família invadindo o Estado.
Com a ascensão dos centros urbanos, acelerada pela vinda da Corte em 1808, os senhores rurais começam a perder privilégio e singularidade. Ganham relevância atividades citadinas relacionadas à atividade política, burocracia, profissões liberais. Essas ocupações couberam, em primeiro lugar, à gente principal do país – lavradores e donos de engenho. A súbita mudança para a cidade fez com que mantivessem a mentalidade, preconceitos relacionados à vida anterior. A família patriarcal fornece o modelo de relação entre governantes e governados. É uma lei moral inflexível que regula a boa harmonia do corpo social.
Tradicionalistas e iconoclastas movem-se na mesma órbita de ideias, os que os separa é a forma e superfície. A revolução pernambucana de 1817 foi uma reedição da luta do natural da terra contra o adventício, do senhor de engenho contra o mascate. Vitoriosa, é pouco provável que mudasse nossa estrutura político econômica. Entre os condutores do movimento, muitos pertenciam à chamada nobreza da terra e nada indica que estivessem preparados para abrir mão de suas prerrogativas.
O que era verdadeiro em 1817 continua valendo após a emancipação política. Esse caráter exterior das numerosas agitações ocorridas antes e após a Independência mostra ainda a influência da colonização portuguesa na vida política. A improvisação forçada de uma burguesia urbana no Brasil fez com que a mentalidade da casa grande se tornasse comum a todas as classes como norma de conduta.
As dificuldades observadas desde os velhos tempos, no funcionamento dos nossos serviços públicos tem a mesma causa: na maioria dos países de história colonial recente, mal existe uma camada intermediária entre os meios urbanos e as propriedades rurais destinadas à produção de gêneros exportáveis. O aproveitamento da lavoura determinou o deslocamento de núcleos de povoamento rural e formação de sítios isolados e população dispersa e mal apegada a terra.
Procurou-se mostrar nesse capítulo como esse processo resultou no desenvolvimento da dependência urbana em relação ao campo. Na ausência de uma burguesia urbana independente, novas funções criadas são exercidas por indivíduos da mesma massa dos antigos senhores rurais. Toda a ordem administrativa do país durante o império e mesmo depois, já no regime republicano há de comportar elementos vinculados ao velho sistema senhorial. Essa situação é um prolongamento de um fato particular, mesmo para países cuja vida econômica se apoiou no trabalho servil, que prevaleceu durante o regime colonial.
A regra em todo mundo, e em todas as épocas sempre foi o contrário: a prosperidade do meio urbano à custa dos centros de produção agrícola. Aqui ocorreu praticamente o oposto. Os centros urbanos se desenvolveram de forma precária e com ressentimentos da ditadura dos domínios rurais. As funções mais elevadas nas nossas cidades cabiam aos senhores de terras.
No Brasil colonial, a lavoura era a morada habitual dos grandes. Nas cidades residiam alguns funcionários da administração, oficiais mecânicos e mercadores em geral. Iam às cidades para festividades em geral. A habitação urbana era descuidada, a rural que era bem cuidada, apta a receber ostentosamente hóspedes e visitantes.
Assim foi nos dois primeiros séculos da colônia; a partir do terceiro, a vida urbana começa a adquirir mais caráter com a prosperidade dos comerciantes reinóis. Ainda na metade do século XVIII, entretanto, as características da vida colonial persistiam: a pujança do campo comparada à mesquinhez urbana. Essa singularidade avulta se comparada ao que realizaram os holandeses em Pernambuco, onde a vida da cidade se desenvolveu de forma anormal e prematura. Em 1640, enquanto nas capitanias do Sul, povoadas por portugueses, a defesa urbana era encarada como um problema devido à falta de habitantes, em Recife o problema era a alta de habitação para abrigar novos moradores que não paravam de chegar.
O predomínio esmagador do ruralismo foi mais fruto do esforço dos colonizadores do que imposição do meio.
Bibliografia:
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.