Resumo de “Raízes do Brasil” e Depois – posfácio escrito por Evaldo Cabral de Mello para a obra de Sérgio Buarque de Holanda. Boa leitura!
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Raízes do Brasil corresponde a uma fase especialíssima no percurso intelectual de Sérgio Buarque de Holanda, por ser o livro que conduziu a uma ruptura que desembocará nos grandes ensaios da maturidade do autor, como Caminhos e fronteiras, Visão do paraíso e Do Império à República. Graças a esta ruptura, Sérgio Buarque abandonou o projeto de interpretação sociológica do passado brasileiro em favor de uma análise de cunho eminentemente histórico, em que soube evitar os escolhos do monografismo universitário ou meramente erudito.
No cerne desta mutação do sociólogo em historiador encontrou-se a consciência de uma antítese entre a explicação sociológica e a explicação histórica, e a opção por esta ultima. Na sua estadia em Berlim, Sergio Buarque, leitor voraz, travava conhecimento com a sociologia alemã da época. Quem diz sociologia alemã da época diz também epistemologia histórica, pois desde Dilthey e Rickert, os problemas do conhecimento histórico encontravam-se no centro da reflexão sobre as ciências humanas. Assim é que a vocação da sociologia alemã para repensar as questões do conhecimento histórico são flagrantes em Max Weber ou em Georg Simmel. É significativo que, ao regressar ao Brasil em 1930, Sérgio Buarque trouxesse na mala as notas que deveriam constituir uma “Teoria da América”, parte das quais seriam aproveitadas na redação de Raízes do Brasil. De volta ao Rio, quando pode realizar a pesquisa e redigir Raízes, Sérgio Buarque deu-se conta da insuficiência inerente à aplicação de esquemas sociológicos à realidade histórica, embora do exercício frustrado que foi a “Teoria da América” tivesse ficado a propensão louvável ao comparativismo que brota, aqui e ali, nos seus estudos sobre o bandeirismo e, sobretudo, em Visão do paraíso.
Acredito que o longo intervalo de quase dez anos entre o aparecimento de Raízes e a publicação de Monções pode ser explicado, além de pela atividade de Sérgio Buarque como critico literário e de ideias na imprensa, também pela percepção das carências do discurso sociológico na apreensão de realidade histórica. O interesse do historiador tem pouco a ver com o interesse do sociólogo. Um começa onde o outro acaba, dado o grau diferente de generalidade dos conceitos com que operam. Pode-se dizer que há sociologia das revoluções e que há história da Revolução Francesa, mas que uma sociologia da Revolução Francesa será apenas uma inócua mistura de gêneros (mélange des genres), com o que acaba não sendo nem uma coisa nem outra.
Poder-se-ia dizer que pode haver, de um lado, sociologia dos processos colonizadores (englobando, por exemplo, não só os processos de colonização modernos, mas também os da Antiguidade, ou de outras civilizações), e de outro, história da colonização portuguesa do Brasil, mas não sociologia da formação brasileira. As várias tentativas deste gênero feitas entre nós antes de 1930 estão hoje praticamente esquecidas, e não sem razão. Na realidade, a “sociologia da formação brasileira” tinha mais de ensaística do que de sociologia, constituindo antes um esforço de introspecção coletiva do que de analise cientifica.
A geração dos anos 30 (a de Sérgio Buarque, Gilberto Freyre ou Caio Prado Junior) não escapou inicialmente à tentação de dialogar com a geração do primeiro terço do século no terreno de uma “sociologia da formação brasileira”, sendo que seus pais fundadores (Manuel Bonfim ou Oliveira Viana, para só citar estes nomes) haviam utilizado uma sociologia já ultrapassada nos centros de criação científica do Ocidente. Mas se as obras de Sergio Buarque, Gilberto Freyre ou Caio Prado sobreviveram, isto se deveu a que levavam a marca registrada dos grandes historiadores, vale dizer, o tesão pelo concreto. Casa-grande e Senzala e Sobrados e Mucambos foram etiquetados como livros de sociologia, mas a verdade é que sua originalidade e vigor residem no que contém de história social, no caso de Freyre, inspirada na antropologia da grande família brasileira.
Resumindo: a elaboração de Raízes do Brasil saldou-se por uma inflexão de estratégia intelectual de Sergio Buarque. Se ela hoje não parece tão evidente assim é que o texto que o leitor tem em mãos já não é o texto da primeira edição, mas o da segunda, publicada em 1947, substancialmente modificado pelo seu autor na esteira de mudança de percurso que efetuara nos dez anos anteriores. Comparadas as versões, observar-se-á como o discurso de corte sociológico cedeu lugar ao discurso historiográfico e como, em lugar da tentativa de identificar a gênese das mazelas da nossa formação social, surge a análise rigorosa de tópicos claramente definidos nos seus contornos conceituais. Rigor que não se limita àqueles temas, Visão do Paraíso constitui de fato o primeiro livro de história das mentalidades escrito entre nós. Em Do Império à República, o debate generalista, antes de ciência política ou de sociologia, sobre os prós e os contras das instituições imperiais, e substituído por uma análise minuciosa do funcionamento do sistema monárquico. Fenômeno aparentado observa-se por fim em Caio Prado Junior. O que ficou dele foi a Formação do Brasil contemporâneo. Nele, como em Sergio Buarque ou Gilberto Freyre, é a historia, não a sociologia, que garante o interesse permanente da obra.
Bibliografia:
MELLO, Evaldo Cabral de. Posfácio “Raízes do Brasil” e Depois. In: HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.