Resumo de O Semeador e o Ladrilhador – capítulo 4 de Raízes do Brasil, livro de Sérgio Buarque de Holanda. Boa leitura!
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A primazia da vida rural combina com o espírito da dominação portuguesa, que cuidou mais em fazer uma riqueza fácil do que planejar. A habitação em cidades associa-se a manifestações do espírito e da vontade. A construção de cidades foi um eficiente instrumento de dominação ao ser, no mundo elenístico por exemplo, o meio pelo qual foram criados órgãos locais de poder, segundo Max Weber.
Em nosso continente, a colonização espanhola caracterizou-se pelo que faltou à portuguesa: assegurar o predomínio da metrópole sobre as terras conquistadas. Só depois de concluída a povoação e construção de edifícios é que governadores e povoadores devem trazer os naturais da terra à Santa Igreja e à obediência das autoridades civis. O traçado dos centros urbanos na América Espanhola denuncia o esforço de vencer retificar a paisagem. Os castelhanos querem fazer do país ocupado uma prolongação do seu.
Muito distinto foi o caso da América portuguesa, onde predominou o caráter de exploração comercial. A colônia é simples lugar de passagem para o governo e para os súditos. Outra diferença está no fato de a colonização portuguesa ser litorânea e a espanhola preferir as terras do interior e planaltos. Os portugueses dificultavam as entradas terra adentro, receosos de que com isso se despovoasse a marinha.
No terceiro século do domínio é que temos um afluxo maior de emigrantes para além da faixa litorânea, com o descobrimento de ouro das Gerais. O descobrimento das minas, sobretudo as de diamante, foi o que determinou Portugal a por um pouco mais de ordem em sua colônia. No Brasil, a exploração litorânea foi facilitada pelo fato de a costa se habitada por uma única família de indígenas, que de norte a sul falava um mesmo idioma. E é esse idioma que há de servir para o intercurso com os demais povos do país, mesmo os de casta diversa. Os portugueses herdaram muitas das inimizades e idiossincrasias do gentio principal da costa, a ponto de a colonização não ter prosperado muito fora das regiões antes povoadas pelos tupis.
Pouco importa aos nossos colonizadores a disciplina, se não for para servir aos seus interesses imediatos. A forma em que nossas cidades se dispunham, comparadas às da América Espanhola, é um reflexo disso. A cidade que os portugueses construíram na América não contradiz o quadro da natureza, sua silhueta se enlaça na linha da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método. O princípio que norteou a atividade colonizadora dos portugueses foi a rotina, não a razão abstrata. A ordem que aceitam é a do semeador, desleixada e livre, não a do ladrilhador, feita com o trabalho dos homens.
Nenhuma das empresas portuguesas foi popular no reino. O próprio descobrimento do caminho da Índia foi decidido pelo rei contra a vontade dos conselheiros, que não queriam trocar o certo pelo duvidoso. A funesta influência que as conquistas ultramarinas teriam exercido sobre os portugueses é tema constante dos poetas e cronistas dos Quinhentos. Não foi à toa essa influência ter coincidido com o processo de ascensão da burguesia mercantil. A relativa mobilidade das classes sociais fazia com que essa ascensão não encontrasse forte estorvo em Portugal, ao contrário do que ocorria em terras onde a tradição feudal tinha sido mais forte e, por isso, a estratificação mais rigorosa.
À medida que subiam na escala social, as camadas populares deixavam de ser portadoras de sua primitiva mentalidade de classe para aderirem à dos antigos grupos dominantes. Assim, havia um desejo de romper os laços com o passado para que pudessem enaltecer o que parecesse atributo da nobreza genuína. A invenção e a imitação tomaram o lugar da tradição como princípio orientador, sobretudo no século XVI. Em nome da elegância os fidalgos começam a não andar a cavalo e não praticar jogos e torneios aristocráticos, que permitiam que o uso das armas não se perdesse. O cenário que completa essa paisagem da decadência é exemplificado em Camões, cuja tinta épica corresponde a uma retrospecção melancólica de glórias extintas. A tradição portuguesa exprime-se, ao contrário, no discreto uso das virtudes heroicas. Para esse jeito de pensar e sentir, o que pode enaltecer o homem é o crédito vindo pela mão da natureza, como um dom de Deus. Essa visão do mundo manifestou-se também na expansão colonizadora. Nada incitaria os portugueses a tentar dominar seriamente o curso dos acontecimentos, ao contrário dos espanhóis. A fúria centralizadora e codificadora de Castela vem de um povo internamente desunido e sob permanente ameaça de desagregação.
Portugal, por esse aspecto, não tem problemas. Sua unidade política ocorreu no século XIII, antes de qualquer outro Estado europeu moderno. Isso foi possível pela vontade de não influenciar no curso dos acontecimentos, em detrimento da ambição de arquitetar o futuro. O catolicismo acompanhou a metrópole no relaxamento. Os monarcas portugueses, nas terras descobertas, exerciam o poder sobre os assuntos eclesiásticos, como indicação de candidatos ao bispado, por conta própria e conveniências momentâneas. Como corporação, a Igreja podia ser aliada e cúmplice do poder civil, como indivíduos, os religiosos lhe foram constantemente contrários.
Notas ao capítulo 4
1. Vida intelectual na América Espanhola e no Brasil
Estima-se em 150 mil o número de estudantes diplomados na América espanhola. No mesmo período (1775-1821), o número de naturais do Brasil graduados em Coimbra foi de 720. Em todas as principais cidades da América espanhola existiam estabelecimentos gráficos por volta de 1747, ano em que surge o primeiro no Rio de Janeiro. Livros já eram impresso na Cidade do México desde 1535.
Os entraves que a administração portuguesa impunha ao desenvolvimento da cultura intelectual faziam parte do propósito de impedir a circulação de ideias novas que pudessem em risco a estabilidade do seu domínio, que excitasse entre os moradores a insubordinação e a rebeldia.
2. A língua-geral em São Paulo
De acordo com relatos de Pe. Antônio Vieira e Teodoro Sampaio, paulistas e portugueses usavam o tupi em seu trato civil e doméstico; o português era aprendido na escola. Para viver com os índios, os portugueses abriram mão de seus hábitos e do idioma. Ganharam, indiretamente, a expansão colonial para o sertão remoto que as bandeiras desbravavam. Eles precisaram anular-se durante longo tempo para afinal vencerem.
3. Aversão às virtudes econômicas
Os povos ibéricos apresentam repulsa a todas as modalidades de racionalização e de despersonalização. Assim, no mundo dos negócios ganha vantagens o cliente que também é amigo. O que distingue espanhóis e portugueses de outros povos é certa incapacidade de fazer prevalecer qualquer forma de ordenação impessoal e mecânica sobre as relações de caráter orgânico e comunal como são as relações de parentesco, vizinhança e amizade.
Bibliografia:
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.