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Raízes do Brasil – O Homem Cordial

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Resumo de O Homem Cordial – capítulo 5 de Raízes do Brasil, livro de Sérgio Buarque de Holanda. Boa leitura!

O Estado não é uma ampliação do círculo familiar. A indistinção entre as duas formas teve seus adeptos mais entusiastas durante o século XIX, para quem o Estado descenderia da família. Na verdade eles se opõem; só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o indivíduo se faz cidadão.

Em todas as culturas, o processo pelo qual a lei geral suplanta a lei particular faz-se acompanhar de crises que podem afetar profundamente a sociedade. Quem compare, por exemplo, o regime do trabalho das velhas corporações e grêmios de artesãos com o das usinas modernas tem um elemento precioso para o julgamento da inquietação social de nossos dias. A crise que acompanhou a transição do trabalho industrial aqui assinalada dá uma ideia das dificuldades que se opõem à abolição da ordem familiar. Onde quer que tenha bases sólidas a ideia de família – principalmente a de tipo patriarcal – a formação da sociedade segundo conceitos atuais tende a ser precária.

Entre nós, mesmo durante o Império, já se tinham tornado manifestas as limitações que os vínculos familiares exagerados podem impor à vida ulterior dos indivíduos. Não faltavam meios de corrigir os inconvenientes que muitas vezes acarretam certos padrões de conduta impostos pelo círculo doméstico. Se os estabelecimentos de ensino superior contribuíram para a formação de homens públicos capazes, sobretudo os cursos jurídicos fundados desde 1827 em São Paulo e Olinda, devemo-lo às possibilidades que adquiriam adolescentes de libertarem-se dos velhos laços caseiros. Aos que condenam os âmbitos familiares excessivamente estreitos por confinarem os horizontes da criança dentro da paisagem doméstica, pode ser respondido que só hoje isso é considerado um problema. Em outras épocas, tudo contribuía para a maior harmonia entre as virtudes que se formam no lar e as que asseguram a prosperidade social e a ordem entre os cidadãos.

No Brasil, onde imperou o tipo primitivo da família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje. Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade compreender a distinção entre os domínios do privado e do público. Eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário “patrimonial” do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário “patrimonial”, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos.

No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários dedicados a interesses objetivos. Ao contrário, houve, ao longo de nossa história, o predomínio das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos pouco acessíveis a uma ordenação impessoal – como o círculo da família, que se exprimiu com mais força em nossa sociedade. Um dos efeitos decisivos da supremacia do núcleo familiar está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas.

Já se disse que a contribuição brasileira para a civilização será o “homem cordial”. A hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”. Nossa forma de convívio social é, no fundo, o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência. A atitude polida é uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no “homem cordial”. Além disso, a polidez é uma defesa ante a sociedade, que permitirá a cada qual preservar intatas suas emoções. Assim, o indivíduo mantém sua supremacia ante o social. E, efetivamente, a polidez implica uma presença contínua e soberana do indivíduo.

No “homem cordial”, a vida em sociedade é, de certo modo, uma libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência. Sua maneira de expansão para com os outros reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social, que no brasileiro tende a ser a que mais importa. Ela é antes um viver nos outros.

Nada mais significativo dessa aversão ao ritualismo social do que a dificuldade dos brasileiros de uma reverência prolongada ante um superior. Nosso temperamento admite fórmulas de reverência, desde que não suprimam a possibilidade de convívio mais familiar. A manifestação normal do respeito em outros povos tem aqui sua réplica no desejo de estabelecer intimidade.

À mesma ordem de manifestações pertence certamente a tendência para a omissão do nome de família no tratamento social. Em regra é o nome individual que prevalece. Essa tendência acentuou-se estranhamente entre nós. Pode-se relacionar tal fato à sugestão de que o uso do simples prenome importa em abolir psicologicamente o fato de existirem famílias diferentes e independentes umas das outras. O desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo representa um aspecto da vida brasileira que raros estrangeiros chegam a penetrar.

Nosso velho catolicismo, que permite tratar os santos com uma intimidade quase desrespeitosa, provém ainda dos mesmos motivos. A popularidade, entre nós, de uma santa Teresinha resulta muito do caráter intimista que pode adquirir seu culto, que se acomoda mal às cerimônias e suprime as distâncias. Essa forma de culto também aparece na Europa medieval com a decadência da religião palaciana, em que a vontade comum se manifesta na edificação dos grandiosos monumentos góticos. Transposto esse período, surge um sentimento religioso mais humano e singelo. Cada casa quer ter sua capela própria, onde os moradores se ajoelham ante o padroeiro e protetor. Cristo, Nossa Senhora e os santos já não aparecem como entes privilegiados e eximidos de qualquer sentimento humano. Todos, fidalgos e plebeus, querem estar em intimidade com as sagradas criaturas e o próprio Deus é um amigo próximo – o oposto do Deus “palaciano”, a quem o cavaleiro, de joelhos, vai prestar sua homenagem, como a um senhor feudal.

O que representa semelhante atitude é uma transposição característica para o domínio do religioso desse horror às distâncias que parece constituir o traço mais específico do espírito brasileiro. Note-se que ainda aqui nos comportamos de modo perfeitamente contrário à atitude adotada entre japoneses, onde o ritualísmo invade o terreno da conduta social para dar- lhe mais rigor. No Brasil é o rigorismo do rito que se afrouxa e se humaniza. Essa aversão ao ritualismo conjuga-se mal com um sentimento religioso profundo e consciente. No Brasil o nosso culto sem obrigações e sem rigor, um culto que dispensava no fiel todo esforço corrompeu, pela base, o nosso sentimento religioso.

A uma religiosidade de superfície, mais atenta à pompa exterior do que ao sentido íntimo das cerimônias, ninguém pediria que produzisse qualquer moral social poderosa. Religiosidade que se perdia e se confundia num mundo sem forma e que, por isso mesmo, não tinha forças para lhe impor sua ordem. Assim, nenhuma elaboração política seria possível senão fora de um culto que só apelava para os sentimentos e os sentidos e quase nunca para a razão e a vontade. Não admira pois, que nossa República tenha sido feita pelos positivistas, ou agnósticos, e nossa Independência fosse obra de maçons.

A exaltação dos valores cordiais e das formas concretas e sensíveis da religião acomodou-se bem a outros aspectos típicos de nosso comportamento social. Em particular a nossa aversão ao ritualismo é explicável, até certo ponto, pelo fato de, no fundo, o ritualismo não nos ser necessário. Normalmente nossa reação ao meio em que vivemos não é uma reação de defesa. A vida íntima do brasileiro nem é bastante coesa nem disciplinada para envolver e dominar toda a sua personalidade, integrando-a, como peça consciente, no conjunto social. Ele é livre, pois, para adotar quaisquer ideias, gestos e formas que encontre em seu caminho sem maiores dificuldades.

Bibliografia:

HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Rolf Amaro

Nascido em 83, formado em Ciências Sociais, músico, sempre ando com um livro na mão. E a Ana,minha senhora, na outra.

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