Resumo de Trabalho e Classes Sociais, texto de Fernando Haddad publicado na Tempo Social. Boa leitura!
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Creio que uma estratégia teórica razoável para enfrentar o problema das transformações do processo de trabalho nas sociedades contemporâneas seja passar em revista algumas das principais teses que esforçam-se por compreender a estrutura de classes das sociedades contemporâneas.
Podemos iniciar nossa análise pela teoria marxista clássica das classes, sem perder de vista a contribuição dos estudiosos que se debruçaram sobre o assunto. Comecemos pelo que nos interessa imediatamente: o conceito de “classe dos trabalhadores assalariados”. Ruy Fausto propõe duas questões sobre o tema, às quais acrescento uma terceira. A primeira questão remete ao problema de saber até que limite um trabalhador qualificado pertence à classe dos trabalhadores assalariados. A segunda questão consiste em saber se o conceito de trabalhadores assalariados compreende tanto os trabalhadores improdutivos, interiores e exteriores à produção, quanto os trabalhadores produtivos. A terceira questão consiste em pesquisar até que ponto o proletário despossuído dos meios de produção, do ponto de vista da sua atividade ou inatividade, ou seja, do seu emprego ou desemprego, mantém sua condição de trabalhador. A partir das respostas a estas três perguntas coloca-se o problema sobre as tendências do sistema no que se refere à estrutura de classes.
Passemos à questão da qualificação. A força de trabalho, qualificada ou não, reproduz-se, sob o capitalismo, de forma impessoal. Isso só se modifica quando a Ciência passa à condição de fator de produção e fundamento da riqueza; neste caso, já se ultrapassa o debate sobre qualificação do trabalho porque se ultrapassa, no fundo, o próprio conceito de trabalho. Aqui, se trata da negação da própria essência do modo capitalista. É esta negação da essência que faz da forma negada a forma adequada ao modo de produção capitalista.
Quanto à segunda questão, sobre a abrangência do conceito de trabalhadores assalariados relativamente à produtividade ou improdutividade do trabalho executado, há, primeiramente, que se fazer uma distinção entre trabalhadores improdutivos exteriores à produção e trabalhadores improdutivos que se situam no interior do processo de produção. No primeiro caso, o trabalhador vende sua força de trabalho em troca de um “salário”, que não deriva imediatamente das relações de produção. No segundo caso, o dos trabalhadores improdutivos que se situam no interior do processo de produção, isto é, assalariados que vendem sua força de trabalho ao capital, seu rendimento deriva imediatamente das relações de produção. Por ora, só podemos concluir, mantendo-nos fiéis ao conceito de classe de Marx, que a classe dos trabalhadores assalariados compreende os trabalhadores improdutivos, mas não todos: os improdutivos exteriores à produção (funcionários públicos e domésticos) estão excluídos.
Tomemos uma última questão sobre a abrangência da classe dos trabalhadores assalariados, que diz respeito ao emprego ou desemprego da força de trabalho. Com a acumulação de capital, temos o crescimento de um contingente da população, denominado exército industrial de reserva, que, a rigor, pertence à classe trabalhadora. Assim, aumenta também o contingente da população desclassificada, o lumpemproletariado, que se distingue do exército industrial de reserva porque, neste caso, não há a possibilidade desse contingente ser reabsorvido pelo mercado de trabalho. A classe dos trabalhadores assalariados compreende os despossuídos, mas não todos: o lumpemproletariado está excluído.
Até um certo ponto da apresentação de Marx, capitalistas e trabalhadores encontram-se no mercado dispostos a trocar aquilo que cada um dispõe, o primeiro, uma determinada quantidade de dinheiro, o segundo, a mercadoria força de trabalho. De acordo com Marx, à medida que a grande indústria se desenvolve, é da ciência posta em movimento durante o tempo de produção que a criação da riqueza efetiva depende cada vez mais. A rigor, na superindústria capitalista, definida como aquela que incorpora a ciência como fator de produção, o “trabalho” portador do conhecimento científico não é sequer trabalho. É, preferencialmente, atividade.
E os critérios para distinguir uma atividade inovadora de um trabalho qualificado são, entre outros: o agente inovador, ao contrário do trabalhador qualificado, não tem jornada de trabalho, não tem jornada fixa. Isto só é possível porque os agentes envolvidos com o processo de inovação exercem atividades de cunho teórico abstrato, dos técnicos até os cientistas, passando pelos engenheiros. A atividade inovadora, ao contrário do trabalho qualificado, não produz valor. Ela não produz mercadorias.
Quando um certo quantum de conhecimento relativamente exclusível (de que outras pessoas não podem dispor imediatamente) incorpora-se numa nova mercadoria, ela goza do mesmo grau de irreprodutibilidade daquele fator de produção que a concebeu. Até que esse conhecimento exclusível deixe de sê-lo, os preços das novas mercadorias sofrem uma distorção na exata medida da excludibilidade do saber que elas comportam. Dessa “distorção” apropriam-se os capitalistas proprietários dos “meios de produção da ciência” e os agentes inovadores que os põem em marcha. E a forma da divisão entre eles atende mais a critérios extra-econômicos que econômicos. Assim, a “renda do saber” não é salário.
Das tendências até aqui apresentadas, podemos inferir que o trabalho é negado em muitos níveis distintos, fundamentados exclusivamente no fato de estarem os homens de ciência como agentes da produção, que faz com que o trabalho perca a centralidade no interior da própria produção.
O capital contempla, a partir do progresso técnico, dois vetores na determinação do salário: por um lado, barateia as mercadorias que garantem a reprodução da força de trabalho, o que aumentaria o poder de compra do salário real; por outro lado, aumenta a oferta da mercadoria força de trabalho, o que provocaria sua desvalorização. Respeitada a lei geral do sistema, não há dúvida de que a acumulação de riqueza, de um lado, implica acumulação de pobreza, de outro. Quando Marx introduz, em Salário, preço e lucro, o elemento luta de classes na discussão sobre salário, ele vislumbra a hipótese do trabalhador conseguir não só um aumento do salário real, mas também a manutenção do valor da força de trabalho. Com isso, muitas hipóteses inverossímeis nos tempos de Marx tornaram-se realidade. Ocorre uma situação inédita na história na qual o rendimento da classe dominada compra cada vez mais valores de uso. As consequências desse aumento de disponibilidade material das massas trabalhadoras só poderiam ser uma hipertrofia do setor comercial e financeiro, uma hipertrofia do escritório da indústria.
Portanto, da análise das classes que acabamos de empreender, penso ser possível identificar quatro classes distintas na sociedade superindustrial: 1) a classe constituída pelos proprietários do capital, pelos funcionários do capital (alta gerência) e pelos proprietários fundiários; 2) a classe dos agentes sociais inovadores, portadores do conhecimento científico-tecnológico aplicado à produção; 3) a classe dos trabalhadores assalariados interiores à produção. E aqui é mister distinguir produtivos e improdutivos, qualificados, semi-qualificados e não-qualificados, empregados, subempregados e desempregados eventuais; e 4) os desclassificados, ou seja, a não-classe dos não-trabalhadores, composta pelos elementos heterônomos da sociedade. Aceito de André Gorz, como se vê, a sugestão de tratar uma não-classe como classe porque, com efeito, o não-rendimento dessa categoria é também uma consequência imediata das relações de produção, tanto quanto o salário ou o lucro. Ao lado dessas quatro grandes classes, parece-me importante considerar, para fins analíticos, três camadas sociais que, a rigor, não pertencem a qualquer das classes sociais mencionadas: a dos domésticos (que vendem sua força de trabalho como valor de uso), a dos autônomos (que vendem bens e serviços produzidos com meios próprios) e a dos funcionários públicos.
Bibliografia:
HADDAD, Fernando. Trabalho e classes sociais. In: Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 9(2): 97-123, outubro de 1997.
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