Resumo de Modernidade Líquida – Emancipação. É o primeiro capítulo de Modernidade Líquida, de Zygmunt Bauman.
Ao fim das “três décadas gloriosas” que se seguiram ao final da Segunda Guerra Mundial — as três décadas de crescimento sem precedentes e de estabelecimento da riqueza e da segurança econômica no próspero Ocidente — Herbert Marcuse reclamava que poucas pessoas desejavam ser libertadas, menos ainda estavam dispostas a agir para isso, e virtualmente ninguém tinha certeza de como a “libertação da sociedade” poderia distinguir-se do Estado em que se encontrava.
As bênçãos mistas da liberdade
O que foi separado não pode ser colado novamente. Abandonai toda esperança de totalidade, vós que entrais no mundo da modernidade fluida. Chegou o tempo de anunciar, como o fez recentemente Alain Touraine, “o fim da definição do ser humano como um ser social, definido por seu lugar na sociedade, que determina seu comportamento e ações”. A perplexidade de Marcuse está ultrapassada, pois “o indivíduo” já ganhou toda a liberdade com que poderia sonhar e que seria razoável esperar; as instituições sociais estão mais que dispostas a deixar à iniciativa individual o cuidado com as definições e identidades. De agora em diante as comunidades podem ser apenas artefatos efêmeros da peça da individualidade em curso, e não mais as forças determinantes e definidoras das identidades.
As casualidades e a sorte cambiantes da crítica
O que está errado com a sociedade em que vivemos, disse Cornelius Castoriadis, é que ela não mais reconhece qualquer alternativa para si mesma e, portanto, sente-se absolvida do dever de examinar a validade de suas suposições tácitas e declaradas. A questão é que a sociedade contemporânea (ou, como prefiro chamá-la, a “sociedade da modernidade fluida”) inventou um modo de acomodar o pensamento e a ação críticas, permanecendo imune às consequências dessa acomodação e saindo, assim, intacta e sem cicatrizes das tentativas e testes da “política de portas abertas”.
Quando Adorno e Horkheimer formularam a teoria crítica clássica, era muito diferente o modelo em que se inscrevia a ideia de crítica. Essa modernidade pesada/sólida/condensada/sistêmica da “teoria crítica” era impregnada da tendência ao totalitarismo. A sociedade totalitária da homogeneidade compulsória estava no horizonte. Entre os principais ícones dessa modernidade estava a fábrica fordista, que reduzia as atividades humanas a movimentos rotineiros e predeterminados, excluindo toda espontaneidade e iniciativa individual. O principal objetivo da teoria crítica era a defesa da autonomia, da liberdade de escolha e da auto-afirmação humanas, do direito de ser e permanecer diferente.
Como assinalava Lessing há muito tempo, no limiar da era moderna fomos emancipados da crença no ato da criação, da revelação e da condenação eterna. Com essas crenças fora do caminho, não conhecemos mais limites ao aperfeiçoamento além das limitações de nossos próprios de nossos recursos. E o que o homem faz o homem pode desfazer. Movemo-nos e continuaremos a nos mover por causa da impossibilidade de atingir a satisfação.
Duas características, no entanto, fazem nossa forma de modernidade nova e diferente. A primeira é o colapso gradual da antiga ilusão moderna: da crença de que há um fim do caminho em que andamos; do completo domínio sobre o futuro. A segunda mudança é a desregulamentação e a privatização das tarefas e deveres modernizantes. O que costumava ser considerado uma tarefa para a razão humana foi fragmentado (“individualizado”), deixado à administração dos indivíduos e seus recursos. Não olhe para trás, ou para cima; olhe para dentro de você mesmo, onde supostamente residem todas as ferramentas necessárias ao aperfeiçoamento da vida — sua astúcia, vontade e poder. E não há mais “o Grande Irmão à espreita”. Não mais grandes líderes para lhe dizer o que fazer e para aliviá-lo da responsabilidade pela consequência de seus atos.
O indivíduo em combate com o cidadão
A apresentação dos membros como indivíduos é a marca registrada da sociedade moderna. A sociedade moderna existe em sua atividade incessante de “individualização”, que consiste em transformar a “identidade” humana de um “dado” em uma “tarefa”. Os seres humanos não mais “nascem” em suas identidades. Precisar tornar-se o que já se é é a característica da vida moderna — e só da vida moderna.
Uma vez rompidas as rígidas molduras dos estamentos, a tarefa de “auto-identificação” se resumia ao desafio de conformar-se ativamente aos emergentes tipos sociais de classe e modelos de conduta. Os “estamentos”, enquanto lugares a que se pertencia por hereditariedade, vieram a ser substituídos pelas “classes” como objetivo de pertencimento a ser buscado e continuamente renovado na conduta diária.
O indivíduo é o pior inimigo do cidadão. O “cidadão” é uma pessoa que tende a buscar seu próprio bem-estar através do bem-estar da cidade — enquanto o indivíduo tende a ser cético em relação à “causa comum” ou à “sociedade justa”. O outro lado da individualização parece ser a corrosão e a lenta desintegração da cidadania. As perspectivas de que os atores individualizados sejam “reacomodados” no corpo republicano dos cidadãos são nebulosas. O que os leva a aventurar-se no palco público não é tanto a busca de causas comuns quanto a necessidade desesperada de “fazer parte da rede”.
O compromisso da teoria crítica na sociedade dos indivíduos
A tarefa da teoria crítica foi invertida. Essa tarefa costumava ser a defesa da autonomia privada contra as tropas avançadas da “esfera pública”, soçobrando sob o domínio opressivo do Estado onipotente e impessoal. Não é mais verdade que o “público” tente colonizar o “privado”. O que se dá é o contrário: é o privado que coloniza o espaço público, espremendo e expulsando o que quer que não possa ser expresso inteiramente no vernáculo dos cuidados, angústias e iniciativas privadas.
Para o indivíduo, o espaço público não é muito mais que uma tela gigante em que as aflições privadas são projetadas sem cessar. Os indivíduos retornam de suas excursões diárias ao espaço “público” reforçados em sua individualidade de jure e tranquilizados de que o modo solitário como levam sua vida é o mesmo de todos os outros “indivíduos como eles”, enquanto — também como eles — dão seus próprios tropeços e sofrem suas (talvez transitórias) derrotas no processo.
Quanto ao poder, ele navega para longe da rua e do mercado, para além do alcance do controle dos cidadãos, para a extraterritorialidade das redes eletrônicas – sua condição ideal é a invisibilidade.
E assim o espaço público deixa de desempenhar sua antiga função de lugar de encontro e diálogo sobre problemas privados e questões públicas. Não há indivíduos autônomos sem uma sociedade autônoma, e a autonomia da sociedade requer uma autoconstituição deliberada e perpétua, algo que só pode ser uma realização compartilhada de seus membros. Esta é a situação que hoje se coloca para a teoria crítica — e, em termos mais gerais, para a crítica social. Ela se reduz a unir novamente o que a combinação da individualização formal e o divórcio entre o poder e a política partiram em pedaços.
A crítica da política-vida
Há uma nova agenda pública de emancipação ainda à espera de ser ocupada pela teoria crítica. Essa nova agenda surge do hiato previamente discutido entre a individualidade de jure e de facto.
O trabalho de que os homens estão encarregados hoje é muito semelhante ao que era desde o começo dos tempos modernos: a autoconstituir a vida individual e tecer e manter as redes de laços com outros indivíduos em processo de autoconstituição. O destino do agente livre está cheio de antinomias difíceis de avaliar e ainda mais difíceis de resolver. Consideremos, por exemplo, a fragilidade de toda ação comum, que tem como apoio apenas o entusiasmo e a dedicação dos atores, mas que precisa de algo mais durável para manter sua integridade durante o tempo que leva para alcançar seus propósitos.
Havia um traço anarquista em toda a teorização crítica: via-se o inimigo apenas no lado do poder, e o mesmo inimigo era acusado de todos os retrocessos e frustrações sofridas pela liberdade. Esperava-se que o perigo viesse e os golpes fossem desferidos do lado “público”, sempre pronto a invadir e colonizar o “privado”, o “individual”. Muito menos atenção foi dada à possibilidade da invasão inversa: a colonização da esfera pública pela privada. E no entanto essa eventualidade subestimada e subdiscutida se tornou hoje o principal obstáculo à emancipação.
O poder político implica uma liberdade individual incompleta, mas sua retirada ou desaparecimento prenuncia a impotência prática da liberdade legalmente vitoriosa. O poder político perdeu muito de sua terrível e ameaçadora potência opressiva — mas também perdeu boa parte de sua potência capacitadora. A verdadeira libertação requer hoje mais da “esfera pública” e do “poder público”. Quando a política pública abandona suas funções e a “política-vida” assume, os problemas enfrentados pelos indivíduos de jure em seus esforços para se tornarem indivíduos de facto passam a ser não-cumulativos, destituindo assim a esfera pública de toda substância que não seja a do lugar em que as aflições individuais são confessadas e expostas publicamente.
Essa tarefa coloca a teoria crítica cara a cara com um novo destinatário. A busca de uma vida em comum alternativa deve começar pelo exame das alternativas de política-vida.
Bibliografia:
Bauman, Zygmunt. (2001). Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar.