Modernidade Líquida: Individualidade

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Este é o resumo de Individualidade – segundo capítulo de Modernidade Líquida, obra de Zygmunt Bauman. Bom estudo!

Há não mais de 50 anos a disputa sobre a essência dos prognósticos populares, sobre o que se deveria temer e sobre os tipos de horrores que o futuro estava fadado a trazer se não fosse parado a tempo, se travava entre o Brave New World de Aldous Huxley e o 1984 de George Orwell. A visão de pesadelo que assombrava os dois escritores era a de homens e mulheres que não mais controlavam suas próprias vidas. Huxley e Orwell não podiam conceber uma sociedade sem administradores, projetistas e supervisores que em conjunto escreviam o roteiro que outros deveriam seguir. Não podiam imaginar um mundo sem torres e mesas de controle.

Capitalismo — pesado e leve

Como Karl Marx descobriu, as idéias das classes dominantes tendem a ser as idéias dominantes. Por pelo menos 200 anos foram os administradores das empresas capitalistas que dominaram o mundo — isto é, separaram o factível do implausível, o racional do irracional.

A fábrica fordista – com a meticulosa separação entre projeto e execução, iniciativa e atendimento a comandos, liberdade e obediência, com o estreito entrelaçamento dos opostos dentro de cada uma das oposições binárias e a suave transmissão de comando do primeiro elemento de cada par ao segundo – estabeleceu o quadro metafórico de referência para todos os que tentavam compreender como a realidade humana opera em todos os seus níveis. Nesse estágio de sua história conjunta, capital, administração e trabalho estavam amarrados pela combinação de fábricas enormes, maquinaria pesada e força de trabalho maciça.

Em seu estágio pesado, o capital estava tão fixado ao solo quanto os trabalhadores que empregava. Hoje o capital viaja leve — apenas com pasta, telefone celular e computador portátil. O trabalho, porém, permanece tão imobilizado quanto no passado — mas o lugar em que ele imaginava estar fixado perdeu sua solidez de outrora.

Pare de me dizer; mostre-me!

O capitalismo pesado, no estilo fordista, era o mundo dos que ditavam as leis; o mundo de homens e mulheres buscando fins determinados por outros, do modo determinado por outros. Por essa razão era também o mundo das autoridades: de líderes que sabiam mais e de professores que ensinavam a proceder melhor.

O capitalismo leve permitiu que coexistissem autoridades em número tão grande que nenhuma poderia atingir a posição de exclusividade. Quando as autoridades são muitas, tendem a cancelar-se mutuamente, e a única autoridade efetiva na área é a que pode escolher entre elas. As autoridades não mais ordenam; elas se tornam agradáveis a quem escolhe.

Não faltam, obviamente, pessoas que afirmam “estar por dentro”, e muitas delas têm legiões de seguidores prontos a lhes fazer coro. Tais pessoas “por dentro” são, no máximo, conselheiros — e uma diferença crucial entre líderes e conselheiros é que os primeiros agem como intermediários (como diria C. Wright Mills) entre as preocupações privadas e as questões públicas. Os conselheiros, ao contrário, cuidam de nunca pisar fora da área fechada do privado. Os conselheiros se referem ao que as pessoas aconselhadas podem fazer elas mesmas e para si próprias. As condições de vida em questão levam os homens e mulheres a buscar exemplos, e não líderes. Afinal, eles ouvem diariamente que o que está errado em suas vidas provêm de seus próprios erros e deve ser consertado com suas próprias ferramentas e por seus próprios esforços.

Muitos pensadores influentes (sendo Jürgen Habermas o mais importante deles) advertem sobre a possibilidade de que a “esfera privada” seja invadida, conquistada e colonizada pela “pública”. De fato, a tendência oposta é a que parece estar se operando — a colonização da esfera pública por questões anteriormente classificadas como privadas e inadequadas à exposição pública. A conseqüência que pode ser considerada mais interessante é o desaparecimento da Política com P maiúsculo, a atividade encarregada de traduzir problemas privados em questões públicas (e vice-versa). A tradicional questão da política democrática foi pelo ralo.

A compulsão transformada em vício

As receitas para a boa vida e os utensílios que a elas servem têm “data de validade”. O arquétipo dessa corrida particular em que cada membro de uma sociedade de consumo está correndo é a atividade de comprar. Vamos às compras tanto nas lojas quanto fora delas. O que quer que façamos e qualquer que seja o nome que atribuamos à nossa atividade, é como ir às compras. A lista de compras não tem fim. Porém por mais longa que seja a lista, a opção de não ir às compras não figura nela.

O corpo do consumidor

A vida organizada em torno do consumo é orientada por desejos sempre crescentes e quereres voláteis. Como não há normas para transformar certos desejos em necessidades e para deslegitimar outros desejos como “falsas necessidades”, não há teste para que se possa medir o padrão de “conformidade”.

A saúde demarca e protege os limites entre “norma” e “anormalidade”. Refere-se a uma condição corporal e psíquica que permite a satisfação das demandas do papel socialmente designado e atribuído. A saúde deveria estar, a princípio, livre dessa ansiedade insaciável. Porém, o status de todas as normas, inclusive a da saúde, se tornou frágil numa sociedade de infinitas possibilidades. O que ontem era considerado normal pode hoje ser considerado patológico. A idéia de “doença”, em vez de ser percebida como um evento excepcional com um começo e um fim, tende a ser vista como ameaça sempre presente: clama por vigilância incessante e precisa ser combatida e repelida dia e noite. O cuidado com a saúde torna-se uma guerra permanente contra a doença. A atitude “meu corpo é uma fortaleza sitiada” significa consumir mais — porém consumir alimentos especiais, “saudáveis”, comprados no comércio. Há, em suma, razões mais que suficientes para “ir às compras”.

Livre para comprar — ou assim parece

Como observou recentemente Thomas Mathiesen, a poderosa metáfora do Panóptico de Bentham e de Foucault não dá conta dos modos em que o poder opera. Mudamo-nos agora de uma sociedade do estilo Panóptico para uma sociedade do estilo sinóptico: as mesas foram viradas e agora são muitos que observam poucos. Os espetáculos tomam o lugar da supervisão sem perder o poder disciplinador do antecessor. A obediência aos padrões tende a ser alcançada hoje em dia pela tentação e pela sedução e não mais pela coerção — e aparece sob o disfarce do livre-arbítrio, em vez de revelar-se como força externa.

A oportunidade de “ir às compras”, de escolher e descartar o “verdadeiro eu”, veio a significar liberdade na sociedade do consumo atual. A escolha do consumidor é hoje um valor em si mesma; a ação de escolher é mais importante que a coisa escolhida.

Separados, compramos

A liberdade de tratar o conjunto da vida como uma festa de compras adiadas significa conceber o mundo como um depósito abarrotado de mercadorias. Dada a profusão de ofertas tentadoras, o potencial gerador de prazeres de qualquer mercadoria tende a se exaurir rapidamente. Os consumidores com recursos podem descartar as posses que não mais querem com a mesma facilidade com que podem adquirir as que desejam. Estão protegidos contra o rápido envelhecimento e contra a obsolescência planejada dos desejos e sua satisfação transitória.

A mobilidade e a flexibilidade da identificação que caracterizam a vida do “ir às compras” não são tanto veículos de emancipação quanto instrumentos de redistribuição das liberdades. Como a tarefa compartilhada por todos tem que ser realizada por cada um sob condições inteiramente diferentes, divide as situações humanas e induz à competição mais ríspida, em vez de unificar uma condição humana inclinada a gerar cooperação e solidariedade.

Bibliografia:

Bauman, Zygmunt. (2001). Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar.

Rolf Amaro

Nascido em 83, formado em Ciências Sociais, músico, sempre ando com um livro na mão. E a Ana,minha senhora, na outra.

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