Resumo de Prefácio – Ser Leve e Líquido. É a introdução de Modernidade Líquida de Zygmunt Bauman.
“Fluidez” é a qualidade de líquidos e gases. Eles, diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos. Do encontro com sólidos emergem intactos, enquanto os sólidos que encontraram, se permanecem sólidos, são alterados — ficam molhados ou encharcados. A extraordinária mobilidade dos fluidos é o que os associa à ideia de “leveza”. Associamos “leveza” ou “ausência de peso” à mobilidade e à inconstância.
Essas são razões para considerar “fluidez” ou “liquidez” como metáforas adequadas quando queremos captar a natureza da presente fase, nova de muitas maneiras, na história da modernidade.
Os tempos modernos encontraram os sólidos pré-modernos em estado avançado de desintegração; e um dos motivos mais fortes por trás da urgência em derretê-los era o desejo de descobrir ou inventar sólidos de solidez em que se pudesse confiar e que tornaria o mundo previsível e, portanto, administrável.
Os primeiros sólidos a derreter e os primeiros sagrados a profanar eram as lealdades tradicionais, os direitos costumeiros e as obrigações que impediam os movimentos e restringiam as iniciativas. “Derreter os sólidos” significava, como dizia Max Weber, libertar a empresa de negócios dos grilhões dos deveres para com a família e o lar e da densa trama das obrigações éticas.
O derretimento dos sólidos levou à progressiva libertação da economia de seus tradicionais embaraços políticos, éticos e culturais. Sedimentou uma nova ordem, definida principalmente em termos econômicos. Essa ordem veio a dominar a totalidade da vida humana porque o que quer que pudesse ter acontecido nessa vida tornou-se irrelevante e ineficaz no que diz respeito à implacável e contínua reprodução dessa ordem.
O que está acontecendo hoje é, por assim dizer, uma redistribuição e realocação dos “poderes de derretimento” da modernidade. Na verdade, nenhum molde foi quebrado sem que fosse substituído por outro. A tarefa dos indivíduos livres era usar sua nova liberdade para encontrar o nicho apropriado e ali se acomodar e adaptar.
São esses padrões, códigos e regras a que podíamos nos conformar, que podíamos selecionar como pontos estáveis de orientação e pelos quais podíamos nos deixar depois guiar, que estão cada vez mais em falta. Isso quer dizer que estamos passando de uma era de “grupos de referência” predeterminados a uma outra de “comparação universal”, em que o destino dos trabalhos de autoconstrução individual não está dado de antemão.
Hoje, os padrões e configurações não são mais “dados”. Em vez de preceder a política-vida e emoldurar seu curso futuro, eles devem segui-la (derivar dela), para serem formados e reformados por suas flexões e torções. Os poderes que liquefazem passaram do “sistema” para a “sociedade”, da “política” para as “políticas da vida” — ou desceram do nível “macro” para o nível “micro” do convívio social.
A nossa é, como resultado, uma versão individualizada e privatizada da modernidade, e o peso da trama dos padrões e a responsabilidade pelo fracasso caem principalmente sobre os ombros dos indivíduos. Chegou a vez da liquefação dos padrões de dependência e interação. Eles são agora maleáveis mas, como todos os fluidos, não mantêm a forma por muito tempo.
Seria imprudente subestimar a profunda mudança que o advento da “modernidade fluida” produziu na condição humana. O fato de que a estrutura sistêmica seja remota e inalcançável requer que repensemos os velhos conceitos que costumavam cercar suas narrativas. Como zumbis, esses conceitos são hoje mortos-vivos. A questão prática consiste em saber se sua ressurreição é possível; ou — se não for — como fazer com que eles tenham um enterro decente e eficaz.
Este livro se dedica a essa questão. Foram selecionados para exame cinco dos conceitos básicos em torno dos quais as narrativas ortodoxas da condição humana tendem a se desenvolver: a emancipação, a individualidade, o tempo/espaço, o trabalho e a comunidade.
A modernidade começa quando o espaço e o tempo são separados da prática da vida e entre si, e assim podem ser teorizados como categorias distintas e mutuamente independentes da estratégia e da ação. Na modernidade, o tempo tem história, uma vez que a velocidade do movimento através do espaço se torna uma questão do engenho, da imaginação e da capacidade humanas.
A própria ideia de velocidade dificilmente teria qualquer significado se não fosse uma questão de inventividade e resolução humanas. Quando a distância percorrida numa unidade de tempo passou a depender da tecnologia, de meios artificiais de transporte, todos os limites à velocidade do movimento, existentes ou herdados, poderiam, em princípio, ser transgredidos.
Na moderna luta entre tempo e espaço, o espaço era o lado sólido e impassível — um obstáculo aos avanços do tempo. O tempo era o lado dinâmico e ativo na batalha: a força invasora, conquistadora e colonizadora. A velocidade do movimento e o acesso a meios mais rápidos de mobilidade chegaram nos tempos modernos à posição de principal ferramenta do poder e da dominação.
Michel Foucault utilizou o projeto do Panóptico de Jeremy Bentham como arquimetáfora do poder moderno. No Panóptico, os internos tinham que se ater aos lugares indicados sempre porque não tinham como saber onde estavam no momento seus vigias, livres para mover-se à vontade. O domínio do tempo era o segredo do poder dos administradores — e imobilizar os subordinados no espaço, rotinizando o ritmo a que deviam obedecer, era a principal estratégia em seu exercício do poder. A pirâmide do poder era feita de velocidade, de acesso aos meios de transporte e da resultante liberdade de movimento.
O que leva tantos a falar do “fim da história”, da pós-modernidade, é o fato de que o longo esforço para acelerar a velocidade do movimento chegou a seu “limite natural”. O poder pode se mover com a velocidade do sinal eletrônico. Em termos práticos, o poder se tornou verdadeiramente extraterritorial, não mais limitado, nem mesmo desacelerado, pela resistência do espaço. A história da modernidade é pós-Panóptica. O que importava no Panóptico era que os encarregados “estivessem lá”, na torre de controle. O que importa nas relações de poder pós-panópticas é que as pessoas que operam as alavancas do poder podem fugir do alcance a qualquer momento — para a pura inacessibilidade. As principais técnicas do poder são agora a fuga, a astúcia, o desvio e a evitação, a efetiva rejeição de qualquer confinamento territorial.
Jim MacLaughlin nos lembrou recentemente (em Sociology 1/99) de que o advento da era moderna significou o ataque consistente e sistemático dos “assentados” contra os povos e o estilo de vida nômades, completamente alheios às preocupações territoriais e de fronteiras do emergente Estado moderno.
Ao longo do estágio sólido da era moderna, os hábitos nômades foram mal vistos. A cidadania andava de mãos dadas com o assentamento, e a falta de “endereço fixo” e de “estado de origem” significava exclusão da comunidade obediente e protegida pelas leis. Estamos testemunhando a vingança do nomadismo contra o princípio da territorialidade e do assentamento. No estágio fluido da modernidade, a maioria assentada é dominada pela elite nômade e extraterritorial.
A elite global contemporânea pode dominar sem se ocupar com a administração, gerenciamento, bem-estar, ou, ainda, com a missão de “civilizar”. O engajamento ativo na vida das populações subordinadas não é mais necessário (ao contrário, é fortemente evitado como desnecessariamente custoso e ineficaz). É a velocidade atordoante da circulação, da reciclagem, do envelhecimento, do entulho e da substituição que traz lucro hoje — não a durabilidade e confiabilidade do produto.
A desintegração da rede social, a derrocada das agências efetivas de ação coletiva, é recebida muitas vezes com grande ansiedade e lamentada como “efeito colateral” não previsto da nova leveza e fluidez do poder cada vez mais evasivo. Mas a desintegração social é tanto uma condição quanto um resultado da nova técnica do poder, que tem como ferramentas principais o desengajamento e a arte da fuga. Para que o poder tenha liberdade de fluir, o mundo deve estar livre de cercas, barreiras, fronteiras fortificadas e barricadas. Qualquer rede densa de laços sociais, e em particular uma que esteja territorialmente enraizada, é um obstáculo a ser eliminado. E são esse derrocar, a fragilidade, o quebradiço, o imediato dos laços e redes humanos que permitem que esses poderes operem.
Se essas tendências entrelaçadas se desenvolvessem sem freios, homens e mulheres seriam reformulados no padrão da toupeira eletrônica: um plugue em castores atarantados na desesperada busca de tomadas a que se ligar. Mas no futuro anunciado pelos telefones celulares, as tomadas serão provavelmente declaradas obsoletas e de mau gosto. A longo prazo, serão provavelmente suplantadas por baterias descartáveis compradas individualmente nas lojas e em oferta em cada quiosque de aeroporto e posto de gasolina ao longo das estradas. Essa parece ser a distopia feita sob medida para a modernidade líquida — e capaz de substituir os terrores dos pesadelos de Orwell e Huxley.
Bibliografia:
Bauman, Zygmunt. (2001). Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar.